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Obras como The Wall mostram o engajamento de Roger Waters.

A passagem de Roger Waters pelo Brasil vem causando polêmica, pelas posições políticas do compositor e ex-líder da banda Pink Floyd, fazendo críticas à ascensão do fascismo no mundo e citando o candidato à presidência Jair Bolsonaro como um exemplo. Este é apenas o capítulo mais recente de uma longa relação: a do rock com a política!

Embora alguns espectadores ficaram “surpreendidos” com o posicionamento político de Waters no show em São Paulo (veja mais no post do HQrock) – o primeiro de oito no país – chegando até a alguém afirmar, segundo noticiou a Folha de São Paulo, que “estava tudo bem até ele falar de política”, quando na verdade a política é o tema do show, da turnê e do disco que ele promove.

roger waters rsist fascism in brasiliaO público brasileiro parece ou desconhecer ou esquecer que rock e política são duas palavras que combinam sim e estão presentes de modo veemente desde sempre na produção e consumo desse gênero musical que, não à toa, é chamado de revolucionário.

Então, seja para celebrar essa união de rock e política ou para lembrar (ensinar?) ao público brasileiro, o HQRock dá alguns (poucos) exemplos de como essas duas palavas nunca despregam uma da outra.

Pink Floyd

Pink floyd standart
Pink Floyd em tempos áureos: Wright, Waters, Mason e Gilmour.

Claro, vamos começar com o Roger Waters em questão. A política sempre foi um tema constante na obra da banda nas canções escritas pelo compositor. O segundo álbum do grupo, A Saucerfull of Secrets já traz a faixa Corporal Clegg, uma crítica ao militarismo e à guerra, pois o pai de Waters morreu combatendo na II Guerra Mundial contra os nazistas da Alemanha.

Mas não ficou aí nem de longe. O álbum Darkside of the Moon, de 1973, que transformou o Pink Floyd de destaque do underground londrino em astros internacionais, trazia Money, uma crítica veemente aos endinheirados da sociedade; enquanto Us and them fala da guerra e da violência.

O álbum Wish You Were Here (1975) é todo uma crítica ao showbizz e a faixa Welcome to machine critica a tecnocracia da sociedade e o modo como nos transforma em máquinas insensíveis.

O álbum Animals (1977) é todo baseado no livro A Revolução dos Bichos de George Orwell, na qual Waters usa os animais como cachorros, ovelhas e porcos como metáforas das classes sociais (sim, um viés materialista histórico ou para usar um termo chulo e impreciso, marxista!), na qual os porcos são os industriais, os capitalistas que exploram todos abaixo de si. A capa do disco é um porco voando por cima da Battlesea  Station, uma enorme estação de energia em Londres, que emerge como símbolo do poderio capitalista. O porco voador continua sendo usado por Waters em seus shows até hoje.

The Wall (1979) outro dos maiores sucessos do Pink Floyd é uma ópera rock que ao longo de dois LPs narra a história de Pink, um roqueiro decadente que, após uma série de vieses em sua vida, termina se transformando em um líder fascista – o que na verdade parece ser um delírio do personagem, que se torna catatônico e ergue um muro imaginário entre ele e o restante das pessoas.

As faixas tratam, dessa maneira de muitos temas relacionadas à sociedade. Another brick in the wall (part 1) narra como a guerra deixa crianças órfãs; a “passagem” The happiest days of our lifes mostra como os professores escolares são reprimidos pela sociedade (e por suas esposas) e descontam a frustração nas crianças, exercendo o sadismo; a mais famosa faixa do Pink Floyd, Another brick in the wall (part 2) é um libelo contra a opressão da educação conservadora; Goodbye blue sky narra os horrores da guerra; e Bring the boys back home clama pela volta dos soldados.

pink floyd the wall shows 1981
O muro se monta nos shows de 1981.

In the flesh – em duas versões – exibe os horrores do líder fascista.

Bem menos conhecido, o disco The Final Cut (1983), o último de Waters no Pink Floyd (ele saiu da banda em 1985 e o grupo continuou sem ele por 11 anos), é outra ópera rock sobre a desilusão do sonho do pós-guerra, mostrando como a ascensão da ultra direita nos EUA e na Inglaterra (casos de Ronald Reagan e Margareth Tatcher, respectivamente) levava à crise moral e econômica e trazia de volta o horror da guerra, no caso, nas Malvinas.

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Lennon: ativismo.

John Lennon

Se um show de Roger Waters causa todo esse alvoroço no Brasil, imagina se John Lennon estivesse vivo! O ex-líder dos Beatles era afiliado de ideias comunistas (sim, comunistas, vermelhas, marxistas!) e sempre deixou isso claro em declarações e música.

Afinal, do que você acha que se trata Imagine? O hino imortal da paz diz: “Imagine que não há paraíso/ É fácil se você tentar/ Nenhum inferno abaixo de nós/ E acima apenas o céu/ Imagine todas as pessoas vivendo em paz”. Sim, é isso mesmo que pensou: os versos dizem que o mundo seria melhor sem religião, sem acreditar em céu ou inferno – repare que no inglês, a palavra “céu” que usamos no português para se referir também ao paraíso não tem tal finalidade; o paraíso é Heaven e o sky é o céu mesmo, o firmamento, o céu azul.

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John Lennon no clipe de Imagine.

E vamos mais: “Imagine que não há países/ Não é fácil de fazer/ Nada por matar ou morrer/ E nem religião também/ Imagine todas as pessoas vivendo a vida em paz”. Sim, o comunismo abole o Estado e, portanto, os países. E se o estrofe anterior não ficou claro, agora, Lennon diz diretamente: o mundo seria melhor sem religiões.

“Você pode dizer que eu sou um sonhador/Mas não sou o único/ Espero que um dia você se junte a nós/ E o mundo será um só”, deixa claro que é uma causa a ser seguida, difícil ou impossível, mas sonhar o torna um forte.

Então, vem: “Imagine que não há propriedade/ Eu imagino se você consegue/ Sem necessidade de ganância ou fome/ Uma irmandade de homens/ Imagine todas as pessoas compartilhando todo o mundo”, para repetir a parte do sonhador.

Oh sim, você pode ter raiva do comunismo, mas o que essa palavra realmente significa é uma sociedade na qual não há classes sociais, na qual não há Estado e todos compartilham tudo de maneira equitativa. Apenas isso.

Então, segura: o cristianismo levado à risca é comunista! Isso mesmo! As palavras de Jesus pregam justamente isso: um mundo em que todos vivam em paz e compartilhem o pão, com amor ao próximo e sem pecado não é mesmo? As comunidades cristãs fundadas pelos Apóstolos são chamadas de comunidades comunistas. Isso mesmo!

(A confusão é com o Socialismo, que é entendido como um Estado anterior ao comunismo, no qual o Estado estatiza a sociedade), mas a função do Estado socialista seria desmontar a si próprio e dar origem ao comunismo. Claro, nenhum Estado pretensamente socialista fez isso. Nem de perto. E viraram Estados totalitários que eliminaram os inimigos. Sim, infelizmente.

Mas então, é preciso separar o que é o comunismo enquanto ideia e enquanto prática a partir daqueles que dizem seguir a ideia. Percebem? Do mesmo modo que precisamos distinguir a ideia cristã, ou do cristianismo, daqueles de que dizem seguir Cristo ou o cristianismo e pregam o ódio, a violência, o extermínio e o fascismo.

Voltando ao John Lennon, não termina aí. O ex-Beatles é simplesmente repleto de canções políticas diretas! Que tal Give peace a chance (1969), cuja letra, em estilo mantra praticamente só diz uma única coisa: dê uma chance à paz!

Sabe aquela canção de natal bem conhecida, cantada pela Simone? Então, é Natal. Na verdade, é uma versão em português de Happy Xmas (War is over if you want it) de John Lennon, lançada no Natal de 1971. A letra em português é bem similar ao original e preste atenção quando dezembro chegar: é um chamado à reflexão que diz que é Natal e você se comportou de modo cristão? De modo pacífico? O que a versão da Simone não tem é que o coro da canção canta “a guerra acaba se você quiser”.

Lançada como compacto em 1971, Power to the people é clara já no título: “poder para o povo”! E para acirrar ainda mais, a letra ainda tem conotação feminista, fazendo autocrítica aos movimentos esquerdistas e perguntando: “Vou perguntar ao camarada como ele trata a mulher em casa”, pois afinal, não adianta de nada dizer que é humanista e lutar por direitos e ser machista.

Ah, e falando em feminismo, Lennon tem uma das canções mais feministas já gravadas por um grande artista: Women is the nigger of the world, na qual grita que a mulher é o criolo do mundo, explorada pelo machismo e oprimida, mas que ela iria se libertar.

Do mesmo álbum de Women is the nigger of the world, Some Time In New York City, de 1972, há a canção Sunday bloody sunday, uma crítica à escalada da violência na Irlanda, motivada pela disputa entre protestantes e católicos, que resultou em um grande massacre naquele mesmo ano. Sim, Bono Vox, do U2, um grande fã de Lennon, criaria uma canção com o mesmo tema e título dez anos depois.

Tem mais. Freeda peeple (Bring the Lucie), canção de 1973, do álbum Mind Games, canta de novo contra à guerra e clama à libertação do povo.

Exemplos não faltam. E vêm desde a época dos Beatles, quando Lennon escreveu canções como Word (do álbum Rubber Soul, 1965), que canta a paz e que a palavra amor irá libertar; ou All you need is love (compacto de 1967), que canta de novo que o amor liberta; e Revolution (compacto de 1968), que clama a revolução – isso mesmo, revolução! – embora prefira a revolução pacífica, sem armas.

Ah, e para constar: John Lennon foi para os Estados Unidos em 1972 afim de promover alguns shows e descobriu que o Governo dos EUA queria deportá-lo de volta à Inglaterra, a pretexto de uma prisão por porte de drogas quatro anos antes. Mas ele tinha alguma ideia dos reais motivos.

Assim que chegou aos EUA, Lennon se aliou à extrema esquerda e participou de protestos e movimentos. Passou a ser perseguido pelo FBI, com espiões monitorando seus movimentos e grampeando seu telefone e até disse isso na TV. O Governo de Richard Nixon – que clamava ser o bastião da moral e dos bons costumes e terminou sofrendo um processo de impeachment porque espionava os adversários políticos e usou a máquina estatal para prejudicá-los – temia o poder de influência de Lennon e o queria fora do país. Lennon lutou na Justiça por 4 anos e conseguiu o Green Card.

Dez anos após a morte de Lennon – assassinado por um fã com distúrbios mentais em 08 de dezembro de 1980 na porta de seu apartamento em Nova York – um historiador usou a Lei da Informação e solicitou os arquivos do FBI sobre Lennon. Recebeu mil páginas com relatórios que comprovavam que ele foi seguido e monitorado por anos!

bob dylan on acoustic guitar circa 1963
Dylan no início da carreira, em sua persona folk.

Bob Dylan

Armado apenas de um violão e de uma gaita com uma grande voz, Bob Dylan assustou os EUA com suas letras críticas no início dos anos 1960. Estourou em 1963 com Blowin’ in the wind que clama à paz e a não-violência e não parou.

The Times They Are A-Changin’ canta que os conservadores que se segurem, porque os jovens irão vir e virar o mundo deles de cabeça para baixo.

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Neil Young.

Neil Young 

Neil Young sempre foi muito ativo politicamente. Quando ingressou no supergrupo Crosby, Stills, Nash & Young, em 1970, a primeira canção que lançou foi Ohio que critica o massacre das forças policiais contra os estudantes da universidade de Berkeley que protestavam contra a Guerra do Vietnã.

Muitas de suas faixas são críticas sociais ou políticas, como Alabama, que critica o conservadorismo do Sul dos EUA.

Ainda na ativa, mantém o ativismo. Recentemente, lançou o álbum Monsanto Years, contra as ações da empresa que compromete o meio ambiente nos EUA e em outros países, como o Brasil.

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Sid Vicious: ícone do Sex Pistols.

Punk

Gosta de punk? O movimento punk foi um movimento de rebelião. Embora os costumes e a indústria musical fossem alvos, as bandas britânicas tiveram uma pegada mais política do que as dos EUA. O primeiro compacto dos Sex Pistols é Anarchy in U.K. na qual o cantor Johnny Rotten se declara um anarquista violento. Já God saves the Queen, o segundo single, critica a monarquia e a rainha.

O The Clash era uma banda de esquerda mais tradicional, inclusive, tendo gravado o álbum Sandinista, batizado a partir do movimento político que tentou tomar o poder na Nicarágua.

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Dentre as bandas do pós-punk, uma das mais políticas e críticas foram os irlandeses do U2. A trupe de Bono Vox e The Edge encheram seus primeiros álbuns de canções políticas, como nos álbum War e The Unforgettable Fire, de 1982 e 1984, respectivamente. Na primeiro, estão Sunday bloody sunday, a “filha” de John Lennon (mas mais apropriada, pois eles são irlandeses), e New year’s day; enquanto no segundo, Pride (in the name of love) e MLK.

Na verdade, o U2 seguiu em frente de muitas maneiras, mas mantém a linha crítica e Bono vox é um artista engajado.

BRock

E o rock brasileiro? Nos anos 1980, Legião Urbana, Titãs, Paralamas do Sucesso, Engenheiros do Hawaii, Capital Inicial, Ira! e Plebe Rude lotaram as rádios do Brasil de canções críticas. E políticas!

Claro que o tempo passa, e muitos desses artistas estão vivos hoje negando o que disseram ou fizeram nos anos 1980, mas naquele contexto, foi um movimento sensacional!

Que país é este?, Conexão amazônica, Baader-Mainhof blues, Soldados, Fábrica, “Índios”, Mais do mesmo, O reggae, Perfeição, Canção do trabalho… da Legião Urbana; Alagados, Selvagem, Calibre… do Paralamas do Sucesso; Miséria, Marvin, Comida, Televisão… dos Titãs; Até quando esperar? da Plebe Rude… Não tem fim.

Por fim, é preciso não esquecer que “política” não quer dizer apenas questões relacionadas às eleições ou partidos políticos. Mas qualquer ação que esteja direcionada à melhoria, mudança ou discussão da sociedade é política.

chuck-berry live TAMMY showPor isso, o rock é revolucionário já desde os anos 1950 porque era uma sonoridade que transgredia a industria cultural dos EUA da época; porque as letras falam de amor e sexo numa era de puritanismo; porque brancos e negros gostavam da mesma música, tocavam nas mesmas bandas e iam aos mesmos shows, num tempo em que os EUA eram marcados por forte apartheid social.

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Discos da Invasão…

O rock continua sendo revolucionário nos anos 1960 quando a classe trabalhadora britânica se apaixona pelo gênero musical e passa a produzir sua própria versão dele, diferente daquela made in USA e esse rock inglês não é aceito pela sociedade inglesa, nem pelos aparelhos culturais – como a rádio BBC, por exemplo – e forçaram sua permanência chutando a porta, resultando no sucesso sem medidas dos Beatles e de seus companheiros de Invasão Britânica, como Rolling Stones, The Who, Eric Clapton etc.

Era revolucionários porque Beatles e Stones cantavam não somente o amor, mas o sexo. E isso chocava a sociedade.

Enfim, esse post poderia não ter mais fim…

Rock e política andam sempre juntos.

Ainda bem!