Chocante! Esta é a palavra para descrever Coringa, o filme de Todd Phillips estrelado (brilhantemente) por Joaquin Phoenix. Incômodo! Este é o sentimento que ele deixa ao se assistir seus poucos mais de 120 minutos. Esta é a resenha do HQRock para a primeira “aventura” solo do vilão mais conhecido do Batman.

Em primeiro lugar, vamos de contra aos rótulos! Coringa não é um “filme de super-heróis”. Portanto, não deve ser classificado ou analisado de modo comparativo às aventuras dos Vingadores ou mesmo de Batman vs. Superman – A Origem da Justiça, ou mais ainda, a Esquadrão Suicida, última vez em que o palhaço do crime deu as caras no cinema em tempos recentes.

Não, Coringa é um filme de outra natureza. É claramente inspirado na Hollywood dos anos 1970 e deve muito mais aqueles longas duros, sérios, sombrios e sujos, de protagonistas disfuncionais, como Taxi Driver, Um Dia de Fúria e Desejo de Matar. Desde à fotografia ao figurino é nisto que Coringa se espelha.

E nisto se sai muito bem! Coringa explora de modo deplorável a Gotham City do fim dos anos 1970, e início dos anos 1980, marcada pela pobreza e violência, com uma greve dos lixeiros deixando a cidade imunda e mais desoladora.

A trama, espelhada naqueles dramas disfuncionais, mostra o típico herói caído, ou melhor dizendo, a trágica figura, que vindo de uma série de adversidades, termina por descer a ladeira da sanidade e cometer atos vis. O espectador não pode dizer que ficou surpreso – como talvez tenham ficado aqueles dos anos 1970 nos longas citados – de que está acompanhando a trajetória do vilão da história. Não do herói como se está acostumado. E o pior, tal qual aqueles filmes clássicos, Coringa não tem um herói. Nenhum. Nada. Sem esperança. Apenas o horror!

Bem-vindo aos anos 1970.

Bem-vindo a 2019!

Coringa está causando alguma celeuma e sensação no público, por causa de seu conteúdo e dos efeitos que causa. O filme é duro, seco e incômodo. Quase nunca é engraçado e é uma viagem tortuosa pelo cotidiano de Arthur Fleck, que de miserável e doentio vai se tornar desesperador e psicopata. Não é com isso que o público está acostumado. Ainda menos associado à bandeira de “filmes de heróis”.

O cinema e o entretenimento dos últimos anos vêm produzido obras sensacionais, mas a um custo: a domesticação dos sentimentos por meio de situações brandas. Notoriamente os longas do Marvel Studios acostumaram seu público de que o perigo em cena nunca é alto demais, nunca é sério demais. Uma sequência tensa é logo acompanhada por uma piadinha – quase sempre infame – que “quebra o gelo”, faz o espectador relaxar e quase esquecer do risco que a trama sugere.

A domesticação dos sentimentos tem um preço: a domesticação dos sentimentos. O público se acostuma.

A Marvel quebrou – um pouco – a própria regra em Vingadores – Guerra Infinita e seu final quase inconcluso, desesperador, desolado; e mais ainda em Vingadores – Ultimato.

Por isso, não fico surpreso quando – na semana passada – ao frequentar uma loja que vende quadrinhos ter ouvido uma mãe indignada pela “morte dos heróis” no último filme. “Como as crianças irão processar isso? Que heróis morrem”. De nada adiantava o rapaz ao lado tentar argumentar com ela que quando tinha 10 anos de idade leu Morte em Família, a história do Batman no qual o mesmo Coringa do qual estamos falando matava o Robin ao espancá-lo com um pé de cabra e o deixar amarrado a uma bomba-relógio ao lado de sua mãe. O Batman chegou ao local apenas para encontrar seu pupilo (filho adotivo) já morto, esbagaçado e frio em meio aos destroços esfumaçados.

Essa era a literatura de crianças menos domesticadas do que aquelas que hoje assistem TV a Cabo protegidas e filmes de heróis em que tudo fica bem com uma piada.

Ao romper com a regra, Coringa incomoda. Ele mostra um vilão de verdade. Num filme sem heróis. Isso o público não está mais acostumado a ver.

Mas tem muito mais.

Cada obra dialoga com seu tempo. Coringa se remete à Crise dos 70 para falar dos dias de hoje. Não tem como escapar. A despeito da crise econômica – tema sempre atual – o filme se dirige principalmente a outra coisa, muito mais 2019 do que 1979: a falta de empatia.

Este é o ponto principal de Coringa. É disso que Arthur Fleck reclama explicitamente tanto a Thomas Wayne quanto ao apresentador Franklin Morray. Uma sociedade na qual ninguém se importa com nada, ninguém se importa com ninguém. E mais ainda: na qual aqueles que têm alguma coisa, alguma riqueza material, se esquecem e se deixam de importar com os que não têm. Passam por cima deles.

No filme, Thomas Wayne é um calhorda. Ele acha que vai ajudar Gotham se elegendo prefeito, mas no fundo, não entende o problema. Até o agrava mais ainda por sofrer do mal que o filme o acusa.

E nisto estamos falando dos dias de hoje. A globalização desenfreada, a avidez do capital que destrói postos de trabalho tradicional e tenta criar a ilusão de que cada um é um empreendedor dono de si, capaz de vencer, somente à espera de seu Coach. Não é assim que funciona. A pobreza existe por causa das condições sociais de sua perpetuação. Por causa de um sistema de manutenção da desigualdade que garante que pobres continuem pobres e ricos continuem ricos. E adivinhem quem está no comando do processo?

O Coach te diz que se você se esforçar o bastante enriquecerá. Empreenderá. Isso é uma ilusão. Se o trabalho gerasse riqueza, ninguém seria mais rico do que o escravo. Não é trabalho que gera riqueza, mas a apropriação dos meios de produção. A capacidade de multiplicar uma riqueza prévia.

Vendendo a ilusão contrária, a sociedade faz aqueles que não têm as riquezas se sentirem frustrados e culpados porque são fracassados. Mas Coringa mostra muito bem que não é bem assim: o que fazer quando você é filho de uma mulher com problemas mentais, que foi abusado na infância, que não tem grande escolaridade, que não tem oportunidades, que vai trabalhar como palhaço numa sociedade que o despreza e lhe paga uma miséria para que viva miseravelmente? Como acumular riqueza assim?

O sonho americano, o sonho do capitalismo, te vende a saída: fazer stand-up e enriquecer. Mas não é assim que funciona. Não há vagas para todos. Não há talento para todos. Que lugar haverá para alguém disfuncional como Arthur?

Coringa toca no calo da falta da empatia. E é isso o que vemos no mundo de hoje. No mundo da fantasia virtual das redes sociais, em que qualquer um pode criar um simulacro de felicidade e “sucesso” por meio de fotografias escolhidas a dedo, filtradas e posadas, que deixam no outro a impressão de inveja, de insucesso, de incompletude. Todos são felizes menos eu? Todos são ricos, menos eu? A saída é a indiferença. E o rancor. O rancor pelo que não tem. Pelo o que o outro não tem, também, mas você não sabe disso ou finge que não sabe. O sentimento é o que importa. Rancor. Rancor que vira ódio. Ódio destilado em comentários, em posts, no Facebook, no Twitter. Uma sociedade de haters.

É sobre isso que Coringa alerta!

A sessão que assisti revela um exemplo aterrador disso. Em uma cena que vai ficar famosa – já está virando meme – um anão foi motivo de risos da plateia em uma cena absurdamente tensa. Não havia motivos para risos. Foi praticamente o único momento do filme em que o público riu alto. Mas riu porque é composto de pessoas doentes, sem empatia, que acham graça da desgraça de um anão. Do mesmo modo que a classe média brasileira acha graça da desgraça dos pobres e dos negros. É doentio.

O Brasil vai casar muito bem com Coringa. Um país em que a população classe média endossa o extermínio dos pobres simplesmente porque prefere manter os (poucos) privilégios que possui e defender o privilégio dos ricos, na vã esperança de que esses os protejam ou apadrinhem. Um país dividido por classe e raça.

O brasileiro acha que é Thomas Wayne.

O filme mostra o que acontece se você pressiona demais essa classe de desassistidos. Arthur quebra. É quebrado. E reage. Mas ele não está só. Toda uma população (pobre, desassistida, sem direitos, sem educação de qualidade, sem saúde de qualidade, como o filme frisa bem) reage também e leva a cidade ao caos.

Coringa incomoda pela descida da ladeira da loucura de Arthur, mas também por mostrar aos privilegiados que eles estão errados. Que é preciso se importar com o outro. Que é preciso lutar pelo outro, pelo direito do outro, pelo diferente. Não porque você quer. Mas porque você precisa. Porque é preciso para a sociedade continuar existindo, equilibrada e minimamente pacificada.

Se não for assim, se pisar demais em cima dos desassistidos, eles vão reagir e lutar pela sobrevivência. E aí é a rota da destruição: é a rebelião ao final de Coringa, é o fim da ordem, a revolução, a guerra civil, o caos, a morte. É isso o que queremos?

A História ensina que a humanidade se desenvolve por ciclos de construção e destruição. A Era do Bronze construiu sociedades incríveis na Antiguidade e ruiu num processo descivilizatório no qual até a escrita foi perdida. O Império Romano se ergueu e dominou o mundo para ser depois demolido pelas invasões bárbaras. O do Oriente também. O Antigo Regime caiu frente às revoluções dos séculos XVIII e XIX. Nossa sociedade atual cairá de modo igual?

Ademais, Coringa desmente uma das questões importantes do personagem nos quadrinhos. Em A Piada Mortal, por meio de gestos brutais, o Coringa tenta provar ao Batman e ao Comissário Gordon, que um dia ruim pode levar à loucura. Não é o caso. Coringa mostra que uma existência inteira de graves problemas sociais, de ausência de direitos básicos (como saúde), podem transformar uma pessoa em um sociopata.

A ação de um sociopata contra uma sociedade apática é explosiva.

É o que estamos assistindo.

Infelizmente, no Brasil de hoje, parece que as proporções estão invertidas. Temos uma multidão de Coringas na internet, prontos a odiar, a matar, pregando o ódio e a morte a qualquer pessoa ou grupo de pessoas que considerem inimigos por sabe-se lá que motivos (não é racional). E o restante assiste apático à trupe de palhaços mascarados prontos a matar quem passar pela frente. Ou sair de um cinema.

E aplaudem!