Dia de grande luto para as HQs! Faleceu ontem uma das maiores lendas dos quadrinhos em todos os tempos: o escritor Dennis O’Neil, célebre roteirista que marcou época tanto na DC Comics (Batman, Superman, Mulher-Maravilha, Liga da Justiça, Lanterna Verde & Arqueiro Verde) quanto na Marvel Comics (Demolidor, Homem-Aranha, Homem de Ferro). A morte foi confirmada hoje pela família do escritor.

O’Neil foi parte da geração genial que assumiu o controle nos estertores da Era de Prata, nos anos 1960, sendo a primeira vez que membros do fandom (ou seja, da base de fãs) que chegaram a escrever os produtos que reverenciavam, levando aquela em direção à Era de Bronze, marcada por histórias mais sérias, inteligentes e antenadas com as grandes mudanças sociais, políticas e culturais das décadas de 1960 e 70, mudando para sempre a “cara” das HQs, com uma roupagem mais adulta e não mais vinculadas à ideia de “arte para crianças”.

De jeito nenhum! As histórias de Dennis O’Neil tratavam de vício em drogas, alcoolismo, luta de classes, violência pesada e suicídio.

Além de um dos mais importantes escritores de quadrinhos, O’Neil também se destaca em seu trabalho como editor, de novo, nas duas grandes editoras, mas com especial diferencial na DC Comics, como sendo o grande responsável pela fase áurea do Batman.

Dennis O’Neil nos anos 1970.

Nascido em 03 de maio 1939, o mesmo ano em que Batman foi publicado pela primeira vez, parecia que o destino iria lhes reservar uma profícua parceria. Natural de Saint Louis no Missouri, O’Neil foi criado em uma família católica e conservadora, estudando em um Colégio Militar, o que lhe levou a se alistar na Marinha dos Estados Unidos no início dos anos 1960. Ele, inclusive, desembarcou em Cuba, em 1962, em meio a Crise dos Mísseis e a fracassada invasão da Baía dos Porcos.

Porém, as ações militares lhe levaram a mudar seu modo de pensar e O’Neil se transformou em um liberal de tendências socialistas, participando ativamente dos protestos contra a corrente armamentista e a favor dos movimentos pacifistas, ao mesmo tempo em que se formava na St. Louis University em Literatura Inglesa. Sua formação lhe levou a trabalhar como jornalista.

Incentivado por amigos, em 1965, se submeteu a uma vaga de “Escritor em Teste” disponibilizada na Marvel Comics, por Stan Lee. Aprovado com louvor, passou a trabalhar como assistente de Lee, iniciando sua meteórica carreira.

Seu início na Marvel foi modesto, apenas auxiliando Stan Lee e o colega Roy Thomas, embora tenha ganhado crédito num arco de seis parte do Doutor Estranho e a edição 18 do Demolidor, ambas em 1966.

Mudou-se para a Charlton Comics, nova editora comandada por Dick Giordano, que revelou uma série de novos talentos. O’Neil trabalhou usando pseudônimo porque tinha um contrato com a Marvel.

Em 1968, Giordano mudou-se para DC Comics e levou consigo os artistas. O’Neil estrou nas aventuras do Rastejador, um anti-herói criado por Steve Ditko. Confiante no trabalho do jovem, a DC lhe encarregou de reformular a revista da Mulher-Maravilha, junto ao desenhista Mike Sekowsky. O’Neil: tirou seus poderes, mudou seu uniforme, rompeu os laços com a Ilha Paraíso e a envolveu em uma série de tramas de espionagem à la 007. A mudança gerou reclamações das feministas, pois a personagem era o símbolo do poder feminino, mas incluiu Diana Price definitivamente nos anos 1960, com histórias tratando da emancipação feminina, com as mudanças culturais e políticas da época, inclusive, uma ambientação baseada na corrente Mod, tão em voga na Londres da época.

A Mulher-Maravilha vinha de uma fase estagnada, com histórias produzidas pela mesma equipe desde os anos 1940 (20 anos antes!) e O’Neil injetou uma grande lufada de ar fresco, apesar do estranhamento. A DC Comics percebeu isso e logo aumentou o passe do escritor, colocando-o na revista da principal equipe da editora, para também lhe dar uma renovada.

Na Liga da Justiça, O’Neil foi melhor sucedido em termos comerciais. Trabalhando com o desenhista Dick Dillin, entre 1968 e 1970, tornou as histórias da equipe mais sérias e com alguns comentários sociais. Em suas páginas, o personagem Arqueiro Verde deixou de ser um playboy milionário para se tornar um vigilante urbano de ideias liberais. Também deu origem à apreciada Fase do Satélite, que influenciou bastante todos os escritores posteriores e o famoso desenho animado dos anos 2000, Justice League – The Animated Series.

As histórias de Denis O’Neil fizeram a DC Comics finalmente perceber qual era o motivo de estar perdendo espaço no mercado para a Marvel Comics de Stan Lee: histórias mais inteligentes, mais sérias e antenadas ao seu tempo. Com isso, percebeu que podia usar a pegada do escritor para salvar as vendas de seus dois dois principais personagens: Superman e Batman.

A DC queria aumentar as vendas de Superman, então, promoveu uma mudança de tom na série. O editor Julius Schwartz, Dennis O’Neil (em Superman), Elliot S. Maggin (Action Comics) e Jack Kirby (Superman’s Pal Jimmy Olsen) produziram histórias mais sombrias, procurando trazer o homem de aço um pouco mais próximo da realidade, com poderes menores e vilões mais ameaçadores. O’Neil e Maggin, inclusive, mudaram o status quo: o Planeta Diário é comprado pelo chefão do crime Morgan Edge e Clark Kent é transformado em âncora de TV; os poderes do Superman são reduzidos; e toda a kryptonita do mundo é transformada em ferro em consequência de uma explosão radioativa na atmosfera terrestre. O’Neil ficou entre os números 233 e 254 de Superman (com alguns intervalos), trabalhando com o desenhista Curt Swan, enquanto Neal Adams fazia as maravilhosas capas.

Mas foi com o Batman que O’Neil fez seu melhor e mais conhecido trabalho. Entre 1970 e 1972, o escritor comandou os dois principais títulos da personagem, Detective Comics e Batman, com a missão de devolvê-lo a seu contexto original: um “cavaleiro das trevas”, um vigilante sombrio, noturno, sério. Os anos de publicações, as censuras editoriais e a pressão mercadológica fizeram-no desviar desse caminho, resultando em um personagem sorridente, lidando com seres galácticos, que não combinavam com sua natureza de “super-herói sem poderes”.

O’Neil afastou definitivamente a imagem da infame série de TV do Batman, que destruiu a moral da personagem. Os roteiros voltaram a situá-lo em um contexto policial e de terror. E a arte realista de Neal Adams sintetizou tudo isso muito bem. As histórias da dupla estão entre as melhores já escritas com o cavaleiro das trevas.

A primeira medida: afastar o Robin! Nenhum vigilante sombrio pode ser acompanhado por uma criança. Assim, Batman passa a agir sozinho em Gotham City, se transferindo da Batcaverna para a cobertura da Torre Wayne, o que enfatizava ainda mais o envolvimento urbano do herói.

O’Neil e Adams também revitalizaram alguns vilões do Batman como o Duas Caras e o Coringa, tornando-os mais aterradores. E criaram Rã’s Al Ghul e sua filha Tália, dois elementos fundamentais da mitologia moderna do personagem.

O’Neil e Adams também assumiram a revista do Lanterna Verde, entre 1971 e 1972 e colocaram o policial galático em parceria com o Arqueiro Verde, determinando o primeiro como um conservador alienado e o segundo como um esquerdista liberal. Cabe ao Arqueiro Verde colocar os pés do Lanterna Verde no chão, e os dois percorrem os Estados Unidos (numa alusão ao filme Easy Rider) descortinando um país e uma cultura. O’Neil usou a revista como veículo para suas ideias e discutiu temas sérios, como drogas, racismo e as mortes de Martin Luther King e Robert Kennedy, ainda tão recentes.

O’Neil continuou em Batman até 1975 e voltou à Detective Comics entre 1978 e 1980; retornando depois ao Lanterna Verde, entre 1976 e 1980, mas sem a mesma qualidade (e sucesso) de antes, quando o artista viveu uma fase difícil, com abuso de drogas e álcool.

Mas ainda assim, O’Neil produziu uma das grandes histórias dos anos 1970 com Superman vs Muhammad Ali, uma HQ que, a partir de uma premissa besta (unir o homem de aço ao maior boxeador de todos os tempos e, na época, no auge da carreira como Campeão dos Pesos Pesados), se transformou numa grande história, que teve a trama desenvolvida pelo desenhista Neal Adams, mas teve os diálogos escritos por O’Neil.

Em 1980, O’Neil regressou à Marvel. Primeiro, assumiu o cobiçado título principal do Homem-Aranha, The Amazing Spider-Man, a partir do número 207. Infelizmente, a temporada de dois anos na revista não rendeu histórias  memoráveis.

Melhor sucedido foi no Demolidor. O’Neil assumiu o cargo de editor e deu espaço para que Frank Miller escrevesse e desenhasse no Demolidor o mesmo que o próprio O’Neil havia feito com o Batman: o transformá-lo em um sombrio vigilante urbano em aventuras de tom mais realista. O sucesso foi imediato.

Em 1983, Miller saiu do Demolidor e o próprio O’Neil o substituiu, mantendo o mesmo tom em boas histórias, desenhadas pelo fantástico David Mazzucchelli, mas sem o sucesso do antecessor. Também foi editor de outros títulos da Marvel, particularmente dos “heróis urbanos”, como Cavaleiro da Lua, Luke Cage e Punho de Ferro.

Porém, o melhor trabalho como escritor na Marvel foi no Homem de Ferro. Entre 1982 e 1986, O’Neil produziu uma memorável fase na vida de Tony Stark, onde o empresário tem que lidar com o seu alcoolismo ao ponto de ter sua fortuna roubada e ser substituído no papel de Homem de Ferro por seu amigo James Rhodes. O autor também criou o vilão Obadiah Stane, o responsável pelos maiores problemas enfrentados pelo herói nesse período.

No final de seu arco, O’Neil faz Stane assumir a identidade de Monge de Ferro e combater Tony Stark, que cria uma nova armadura para a ocasião: a vermelho e prateada. Numa comovente história, Stane é derrotado e suicida. Como o leitor pode notar, grande parte deses conceitos foram usados na trama do primeiro filme do Homem de Ferro, do Marvel Studios, em 2008.

De volta à DC em 1986, O’Neil se transformou no editor das revistas do Batman durante 14 anos. Sob sua orientação, foram escritas algumas das maiores histórias do personagem, como O Cavaleiro das Trevas (de Frank Miller), Batman: Ano Um (Miller e Mazzucchelli), A Piada Mortal (Alan Moore e Brian Bolland), Asilo de Arkham (Grant Morrison e Dave McKean) etc.

O’Neil também coordenou os grandes arcos de histórias que fizeram sucesso nos anos 1990, como A Queda Morcego, Filho Pródigo, Contágio, Terremoto, Terra de Ninguém e os clássicos modernos Bruce Wayne: Assassino e Bruce Wayne: Fugitivo.

É impossível pensar no Batman pós-Crise nas Infinitas Terras sem mencionar Dennis O’Neil. Seu trabalho como editor possibilitou que o personagem fosse tratado como uma criatura urbana e sombria, ao mesmo tempo em que soube escolher a dedo os artistas que iriam contar as histórias em arcos como Morte em Família com Jim Starlin e Jim Aparo; as histórias profundas de Alan Grant e Norm Breyfogle; o sucesso de Chuck Dixon (especialmente em A Queda do Morcego e logo depois) até a chegada de “novos nomes” como Greg Rucka e Ed Brubaker, que elevaram o Batman a outro patamar.

Após deixar a editoria do Batman, em 2000, O’Neil diminuiu consideravelmente seu volume de trabalho, mas produziu vários livros, dentre os quais adaptações da saga A Queda do Morcego e os romances baseados nos filmes Batman Begins e Batman – O Cavaleiro das Trevas.

Dennis O’Neil tinha 81 anos e morreu de causas naturais, segundo sua família.

Os quadrinhos não seriam o que são hoje sem seu trabalho.