Fãs adoram listas e respostas a perguntas objetivas e uma das mais frequentes está relacionada a fatos importantes. No caso de bandas de rock, é muito comum coisas como “quando se conheceram?”, “como começaram?”, “qual foi o último show?”… Numa banda como os Beatles, cuja carreira é tão bem documentada, a maior parte dessas perguntas é de fácil resposta e prontamente conhecida de fãs e curiosos, mas tem uma delas que desperta bastante curiosidade e não tem uma resposta simples: qual a última gravação dos Beatles?

O fato é: não existe uma única resposta a esta pergunta.
Por quê?
Porque precisaríamos definir o que significa “última gravação dos Beatles” ou “última canção gravada pelos Beatles”.
Então, aproveitando que todos gostam de listas, a resposta a ambas as variações dessa questão poderiam ser respondidas por um lista:
- Polytheme Pam/ She came in through the bathroom window
- Because
- The end
- I me mine
- The long and winding road
Cada uma dessas canções pode razoavelmente ser considerada a última canção gravada pelos Beatles.
E por quê?
Porque depende da definição de “última”: foi quando os quatro membros tocaram juntos uma faixa? Gravar apenas overdubs (sobreposições) conta?
Queremos saber mais sobre isso? Por que todas essas canções podem ser “a última”? Para isso o HQRock preparou esse pequeno especial. Portanto, pegue sua guitarra Epiphone, deixe os cabelos bem longos e “Vem com a gente” (Come together) desvendar esse pequeno mistério biográfico dos Beatles. Faremos isso no pequeno jogo de candidatas e seus motivos.
Ah, e vale lembrar que já existe um especial do HQRock sobre o fim dos Beatles, analisando os motivos do término da banda. Quer conhecer? Pois depois clica aqui!
Vejamos, portanto, as candidatas a última canção gravada pelos Beatles…

Candidata
Polytheme Pam/ She came in through the bathroom window
Início da gravação: 25 de julho de 1969
- Por que pode ser a última gravação? Porque foi a última vez em que todos os quatro Beatles gravaram uma canção nova, tocando juntos seus instrumentos.
- O que pesa contra? Outras gravações ocorreram depois desta.
Os Beatles estavam já na reta final das gravações do álbum Abbey Road e montavam as canções que iriam compor a chamada Huge Melody, o grande meddley que ocupa a maior parte do Lado B do álbum. Lennon e McCartney reuniram várias canções que compuseram nos meses recentes e as quais ainda não haviam finalizado e/ou formalizado seus arranjos e decidiram juntar uma às outras formando um tipo de suíte. E entre elas estavam essas duas faixas.
O Lado B de Abbey Road abre com a soberba Here comes the sun, de George Harrison, e é seguida de Because, de Lennon, daí vindo a Huge Melody, que inicia com You never give me your money e as canções vão se prosseguindo e unindo umas às outras até que a dobradinha Polytheme Pam e She comes in through the bathroom window permite uma pausa e a suíte continua com sua porção final (falaremos dela adiante).
Polytheme Pam era uma canção de John Lennon sobre uma garota que gostava de sadomasoquismo. Como vinha após Mean Mr. Mustard, ele adaptou ligeiramente a letra pré-existente desta para que desse a entender que Pam é irmã de Mustard, apenas para criar uma conexão entre ambas. Aparentemente, a tal garota sadomasoquista existiu mesmo e foi alguém que Lennon conheceu na época em que estudava na Faculdade de Belas Artes em Liverpool. Ele não gostou muito da experiência, mas adaptou as memórias como essa canção sobre a garota que gosta de roupas de polietileno. Para reforçar que tudo se passou em Liverpool, Lennon exagera o sotaque liverpludiano na canção. Ele compôs a faixa nos tempos da meditação transcendental na Índia (fevereiro-abril de 1968) e tentou criar um arranjo para ela nas sessões de Get Back/ Let it Be (falaremos mais desse projeto adiante) antes do álbum Abbey Road, onde encontrou sua casa.

Já She comes in through the bathroom window foi composta por Paul McCartney durante as sessões do The White Album, em 1968, mas a guardou para o projeto seguinte. A letra é sobre um episódio real, mas existe alguma dúvida sobre que episódio foi esse. Existem duas versões mais famosas: a primeira (e menos provável, embora tenha sido a mais conhecida ao longo das décadas) é a de que quando Lennon e McCartney foram aos EUA em abril de 1968 para lançar a Apple Corps., Paul teria aproveitado para se encontrar com a fotógrafa Linda Eastman, com quem já vinha tendo um caso há quase um ano (embora oficialmente ainda estivesse noivo da atriz Jane Asher), e para burlar os jornalistas, Linda teria entrado no quarto de Paul pela janela do banheiro; a segunda versão é a de que uma das fãs dos Beatles que faziam a “guarda” na entrada dos estúdios da EMI teria se excedido e invadido a residência de McCartney na Cavendish Ave, que ficava há somente duas quadras do estúdio, e roubado um par de fotografias do músico. Ela teria entrado pela janela do banheiro.
É mais provável que esta última seja realmente o motivo que inspirou a canção, pois a letra faz referência a um furto e a ir à delegacia.
A banda tentou a faixa durante as sessões de Get Back/ Let it Be, na época, em uma versão lenta, com Lennon no piano elétrico. (Essa versão, bastante interessante, está editada no disco The Beatles Anthology Vol. III, de 1996, e pode ser vista em um fragmento em vídeo no documentário Get Back, da Disney+, assim como uma versão em áudio desse fragmento – ampliado – pode ser ouvido nos CDs de bônus da versão remixada do álbum Let it Be lançada em 2021). Mas foi em Abbey Road que a canção ganhou realmente sua forma oficial e, ao contrário daquela primeira investida, foi gravada como um rockão rápido.
Como já sabiam que as duas faixas iriam ser interligadas uma na outra, os Beatles gravaram Polytheme Pam e She comes… juntas, tocadas como se fossem uma única canção quando gravaram as bases da canção no dia 25 de julho de 1969, uma sexta-feira. Nesta sessão, Lennon toca um violão de 12 cordas; McCartney, baixo; Harrison, guitarra solo; e Starr, bateria. Mas como sempre acontece, essa base sofreu várias intervenções com gravações posteriores, adicionando ou eliminando elementos – os chamados overdubs (ou sobreposições). No mesmo dia, por exemplo, como Lennon não gostou da bateria de Starr, fez ele gravar de novo a sua parte em cima do melhor take do dia uma versão mais agressiva.
No dia 28 de julho, Lennon gravou um segundo violão para reforçar os acordes das “paradinhas” da faixa (e conseguir o efeito dos powerchords do The Who, especialistas nesse tipo de movimento instrumental), adicionou o pandeiro que entra na parte final da faixa e uma nova guitarra solo foi gravada para o fim. Não é claro quem tocou essa guitarra, se Harrison ou McCartney, mas em vista de She comes… é de autoria deste, é bem possível que ele tenha apagado a contribuição de Harrison (o guitarrista solo oficial da banda) e substituída por sua própria. No dia 30, Lennon e McCartney gravaram os seus vocais na faixa.
Então, como se vê, apesar de ter sido a última vez que os quatro Beatles se reuniram em um estúdio para gravar uma canção nova, as contribuições daquele momento único e histórico foram adulteradas (ou adicionadas) por versões isoladas posteriores. Mas ainda assim, o fruto daquela última sessão conjunta está audível no material final, de modo que o ouvinte pode ouvi-la e pensar que aquela é a última vez que os Beatles tocaram juntos para valer em um estúdio.

Candidata
Because
Início da gravação: 01 de agosto de 1969
- Por que pode ser a última gravação? Foi uma canção nova gravada depois da anterior e a última canção iniciada nas sessões de Abbey Road, o último disco.
- O que pesa contra? Os quatro Beatles não tocaram juntos na sessão, apenas Lennon, McCartney e Starr; e o registro de Starr sequer ficou gravado.
Uma canção nova de Lennon, composta durante as sessões de Abbey Road, Because foi a última das faixas do disco a ter suas gravações iniciadas. Segundo o próprio compositor, ele se inspirou ao ouvir, em casa, a esposa Yoko Ono tocar a Sonata ao Luar de Beethoven ao piano (sim, Yoko era pianista clássica e tocava com partitura). Ele gostou dos acordes complexos e dos arpejos lentos e, só de farra, pediu que ela os tocasse de trás para frente. Daí, ele teria transformado isso em Because. Mas foi uma adaptação, pois as duas canções são muito distintas uma da outra.
A gravação de Because se deu em duas etapas. Na primeira, no dia 1º de agosto de 1969, gravaram a parte instrumental e aí vem a pegadinha: a base foi composta por Lennon na guitarra, McCartney no baixo e o produtor George Martin tocando um harpchord (cravo) elétrico. Starr estava presente e tocou o ritmo da canção no ximbau para servir de condução e metrono ao restante do grupo, mas sua intervenção soou apenas nos fones de ouvido dos músicos e não foi gravada. Harrison estava no estúdio, mas não tocou: ficou na mesa de som supervisionando a sessão, já que Martin estava lá com os músicos.
No dia 04 de agosto, Lennon, McCartney e Harrison gravaram o vocal da faixa – e Starr não participou – cada qual cantando em uníssono. No dia seguinte, 05, George Martin pegou as três vozes e duplicou cada uma delas separadamente, de modo que, em vez de três partes, os vocais têm nove partes, para deixar as vozes mais fortes. Também nesse dia a última contribuição à faixa foi adicionada: Harrison tocou um Mini-Moog, o primeiro sintetizador, adicionando pequenas frases dissonantes que aparecem na seção instrumental final da canção.
Assim, Because – a última canção nova gravada para Abbey Road – no fim das contas traz três dos Beatles tocando, mas Starr não toca nela.

Candidata
The end
Início da gravação: 23 de julho e 07 de agosto de 1969
- Por que pode ser a última gravação? Foi a última canção finalizada para Abbey Road com a direta participação da banda.
- O que pesa contra? A canção havia sido iniciada antes das demais, mas estava inacabada, somente no finzinho das sessões a banda teve a ideia de produzir um final apoteótico e gravaram em separado essa última parte, mas que traz apenas Lennon, McCartney e Harrison fazendo solos de guitarra, sem Starr (cuja bateria já havia sido registrada antes).
Quando criou a ideia do grande meddley do final do disco, Paul McCartney ficou pensando em como dar um fim à suíte, e se inspirou na música clássica e na alta literatura para fazer isso: um tema instrumental que fosse finalizado com uma frase de efeito, e daí compôs a linha “and in the end the love you take is equal to the love you make” (e no fim, o amor que você recebe é igual ao amor que você dá), o que é uma citação genial. Mas na verdade, ele não sabia onde colocar essa frase.
Quando a canção chegou ao estúdio, foi no dia 23 de julho de 1969, portanto, ANTES de Polytheme Pam/ She comes in through the bathroom window e Because. Mas naquele momento havia apenas uma parte da faixa que ainda era chamada Ending. Naquele dia, o grupo fez uma versão instrumental planejada para dar continuidade ao instrumental do final de Carry that weight. McCartney levou uma estrutura base composta, mas boa parte foi criada ali no estúdio pela banda, os quatro reunidos. E com muita insistência, conseguiram convencer Ringo Starr a gravar um solo de bateria após a introdução. Depois disso, Lennon fazia uma base cortada na guitarra com dois acordes se sucedendo e Harrison um solo, mas o resultado dos 7 takes não foi considerado forte o suficiente e pensaram que podiam incrementar mais.
Mas isso só foi feito semanas depois, começando em 05 de agosto de 1969, quando McCartney cantou os dois versos de abertura que acompanham a introdução. A partir daquele ponto, a banda começou a desenhar o que deveriam fazer. Lennon teve a ideia de que o instrumental no fim deveria ser feito com três guitarras pelos três compositores do grupo, lembrando que nos Beatles antes da fama, Lennon, McCartney e Harrison eram guitarristas. McCartney migrou para o baixo após a saída de Stuart Sutcliffe cerca de um ano antes da banda gravar seu primeiro disco. E embora Harrison fosse o solista oficial, pontualmente, McCartney e Lennon também faziam seus solos em canções específicas, mas até ali, no fim da carreira, nunca os três tinham feito solos na mesma música.
A inspiração de Lennon para a ideia quase certamente veio da banda de blues rock The Fleetwood Mac, liderada por Peter Green, que tinha três guitarristas e era bastante popular no circuito musical de Londres. Ao que parece, Lennon estava bastante interessado neles, pois a canção instrumental Albatross da mesma banda fora a inspiração para o arranjo de Sun King, outra canção de Abbey Road.
Ficou decidido, então, que cada qual dos três Beatles (Lennon, McCartney e Harrison) tocaria dois compassos alternados três vezes e, para isso, no dia 07 de agosto, George Martin e sua equipe de engenheiros de som – Geoff Emerick e Alan Parsons – fizeram duas edições para aumentar o tamanho da faixa: a introdução foi duplicada (com a primeira totalmente instrumental e a segunda com os vocais do dia 05) e a seção instrumental do fim foi editada para aumentar de 22 para 28 compassos e caber as intervenções vindouras. Na faixa base, a guitarra solo inicial de Harrison foi descartada e ficou só o ritmo cortado de Lennon.
Então, após esse trabalho técnico, Lennon, McCartney e Harrison se alinharam no estúdio, cada qual com sua guitarra (duas Epiphones Cassino e uma Gibson Les Paul, respectivamente) e os amplificadores lado a lado e ensaiaram muito brevemente, cada qual mostrando o que tinha pensado para preencher seus dois compassos de cada vez. Na hora da gravação, o trio gravou seus solos em um único take: McCartney toca os dois primeiros compassos; depois, vem Harrison em mais dois; e Lennon fecha os outros dois; e o ciclo se repete outras duas vezes. Um único take e temos aquela maravilha que podemos ouvir no disco até hoje!
Mas e a frase de McCartney? Então, o grupo criou uma terceira seção, mais lenta para abrigar o verso final, com uma melódica guitarra solo de Harrison.
No dia 08 de agosto, após a banda ter tirado a icônica foto da capa do álbum Abbey Road, atravessando a faixa de pedestres, se reuniu no estúdio e, entre outras coisas, foram gravadas adições de baixo e bateria para The end, para fazer uma transição entre as duas repetições da introdução e dar mais força à finalização lenta gravada no dia anterior. A orquestra que acompanha esta parte foi gravada no dia 15 de agosto e a última adesão foi o piano que serve de ponte entre os três solos de guitarra e a parte lenta final, gravado por McCartney no dia 18 de agosto, na última sessão do álbum Abbey Road.
Os quatro Beatles estiveram juntos pela última vez em um estúdio no dia 20 de agosto para supervisionarem a mixagem final do álbum Abbey Road.
Assim, The end se qualifica como “última canção” porque foi a última faixa finalizada para o último álbum e também porque reuniu Lennon, McCartney e Harrison tocando juntos pela última vez, na sessão do dia 07 de agosto. Mas sem Starr.

Candidata
I me mine
Início da gravação: 03 de janeiro de 1970.
Por que pode ser a última gravação? Foi a última sessão de gravação oficial dos Beatles.
O que pesa contra? Não houve a participação de John Lennon, portanto, não reuniu o grupo em sua integridade.
Os Beatles quase conheceram seu fim durante as sessões do The White Album, em 1968, devido às tensões entre seus membros. Então, o que fazer em seguida? Meio desesperado para manter a banda unida, McCartney teve uma ideia que achou genial: uma volta aos concertos, que o grupo havia abandonado em definitivo em 1966, cansados das loucuras da beatlemania.
Os Beatles, na verdade, tinham tocado ao vivo vez ou outra depois daquilo: eles gravaram All you need is love ao vivo para um programa de TV especial com atrações do mundo todo, em junho de 1967, para a primeira transmissão global via satélite da TV; e apresentaram Hey Jude e Revolution diante de uma plateia para promover o single com essas duas faixas em setembro de 1968, no programa de David Frost. E, realmente, a banda ficou animada nessas ocasiões. Tanto que John Lennon tocou ao vivo sozinho no especial de TV dos Rolling Stones em dezembro de 1968. Ou seja, havia um caminho sendo construído.
A ideia de McCartney: criar novas canções, ensaiá-las e fazer um show com canções inéditas, filmar tudo e lançar um álbum ao vivo inédito e um documentário para TV registrando tudo. Era uma boa ideia, o problema foi prazo: fazer tudo isso em apenas três semanas. Isso foi burrice. Não se sabe porque tanta pressa – talvez McCartney achasse que a banda não sobreviveria se demorasse mais – e tomaram a ocasião de Ringo Starr ter que participar das filmagens de um filme no início de fevereiro de 1969 e o fato do estúdio de filmagens estar alugado para a Apple Films, mas sem utilização durante todo o mês de janeiro como uma oportunidade.
No fim das contas, os Beatles se reuniram em 02 de janeiro de 1969 para iniciar o projeto, mas as tensões continuaram, o grupo ficou incomodado em estar sendo filmado o tempo inteiro, Harrison não queria fazer o show etc. etc. No fim das contas, Harrison quis sair dos Beatles após apenas uma semana de ensaios e só voltou com a condição de não haver o show. Então, a banda decidiu tocar as faixas novas como ensaios e isso gerar um disco novo (um ao vivo no estúdio). E filmado para gerar o filme. No fim, ainda conseguiram engabelar Harrison e fazer o famoso show no telhado do prédio da Apple Corps. no centro de Londres em 30 de janeiro como uma forma de “dar um fim ao filme”.
Algumas das faixas que terminaram em Abbey Road – gravado depois do que se convencionou chamar de sessões de Get back/ Let it Be – foram esboçadas ali em janeiro de 1969.
O material, porém, não viu a luz do dia tão cedo. Em março de 1969, os Beatles encarregaram o engenheiro de som das sessões, Glynn Johns, de produzir e editar um álbum a partir daquele material para servir de trilha sonora do documentário, porém, as visões de Johns e da banda discordavam seriamente e quatro versões distintas foram produzidas e todas negadas pelo grupo, o que consumiu todo o resto daquele ano (pois Johns estava ocupado trabalhando com Rolling Stones e Led Zeppelin).
Ao virar para 1970, Lennon teve a ideia de chamar o superprodutor norteamericano Phil Spector para fazer o trabalho e lhe deu total liberdade. Spector editou as gravações, amplificou efeitos e até adicionou orquestras, produzindo a versão final do álbum Let it Be, que terminou chegando às lojas em maio de 1970 (portanto, já 8 meses depois de Abbey Road e 16 meses depois das gravações originais).

E foi no meio daquelas sessões de Get Back/ Let it Be que George Harrison trouxe a canção I me mine, uma valsa-rock. A banda a ensaiou e tocou no dia 08 de janeiro de 1969 e a tentou uma outra vez durante as sessões, mas ela nunca foi realmente estruturada e finalizada.
Quando o disco chegou à etapa final de produção, no fim das contas, a banda percebeu que havia poucas canções finalizadas para compor um álbum completo. Então, veio a ideia de resgatar I me mine, inclusive, porque Harrison só tinha uma única composição dentro do disco àquela altura (For you blue), em vez da tradicional dupla de canções. Mas as versões gravadas no dia 08 de janeiro de 1969 não podiam ser usadas, porque foram gravadas em apenas um canal, afinal, era apenas um ensaio. Então, a saída era regravá-la do zero.
MAS… havia um grande problema… Na época do lançamento de Abbey Road, os Beatles estavam renegociando o contrato com a gravadora EMI e decidiam o que fazer da vida dali em diante. Então, numa reunião no dia 22 de setembro de 1969, John Lennon comunicou que estava fora da banda. Os outros membros ficaram em choque e o novo empresário da banda, Allen Klein, pediu que ele não tornasse a decisão pública para não atrapalhar a renegociação do contrato. Ele aceitou. McCartney, Harrison e Starr pensaram que o colega iria reconsiderar com o tempo, afinal, Starr tinha deixado a banda por duas semanas durante as sessões do The White Album e Harrison também deixara a banda por uma semana durante as sessões de Get back/ Let it Be.
Mas Lennon era Lennon.
Enquanto corria a pós-produção para finalmente lançar o álbum Let it Be, os Beatles agendaram uma sessão de gravação para refazer I me mine, e no dia 03 de janeiro de 1970 Lennon não apareceu, mantendo sua palavra. O trio remanescente gravou a faixa: Harrison no violão, McCartney no baixo e Starr na bateria; seguidos de overdubs com Harrison adicionando duas guitarras solo e McCartney órgão e piano.
Quando Phil Spector assumiu o trabalho de finalização, decidiu adicionar uma orquestra em algumas faixas e I me mine foi uma delas, com essa adição ocorrendo no dia 01 de abril de 1970. Spector também editou a faixa para aumentar seu tamanho, repetindo o refrão e fazendo-a ultrapassar os dois minutos de duração.
Enfim, a gravação de I me mine foi a última oficial dos Beatles, mas sem John Lennon. Ou seja, apenas três deles.

Candidata
The long and winding road
Início da gravação: 26 de janeiro de 1969 e 01 de abril de 1970.
Por que pode ser a última gravação? Foi a última sessão de gravação envolvendo os Beatles enquanto a banda ainda existia (a gravação da orquestra para a canção) e contou até com a participação de um deles, o baterista Ringo Starr.
O que pesa contra? Foi uma sessão apenas de overdubs de orquestra e não envolveu realmente a banda.
Também durante as sessões de Get Back/ Let it Be, uma das faixas apresentadas foi The long and winding road, um blues-jazz lento de Paul McCartney, de estrutura algo pedante na composição dos acordes. Os demais membros da banda não gostavam dela e trazia uma formação ligeiramente distinta, com McCartney na voz e piano, Lennon no baixo, Harrison fazendo intervenções mínimas na guitarra e Starr numa bateria bem discreta. A canção foi tocada algumas vezes naquelas sessões ao longo do mês de janeiro de 1969 e a versão que seria lançada foi gravada no dia 26 de janeiro de 1969. Era uma versão frágil, com a banda (especialmente Lennon e Harrison) tocando de modo displicente. Mas por qualquer motivo que seja (ele sempre alegou o aspecto da espontaneidade), Glynn Johns optou por essa versão quando montou sua versão do álbum.
A banda chegou a gravar uma versão bem melhor, mais forte e bem tocada, no dia 31 de janeiro, mas essa não foi escolhida para compor a versão final do álbum, nem por Glynn Johns, nem por seu substituto, Phil Spector.
Quando Spector assumiu a missão de finalizar o álbum, mais de um ano depois das gravações, em março de 1970, decidiu criar uma orquestra para The long and winding road como uma forma de disfarçar o modo como a banda tocou mal. Então, naquela que foi a última dentre todas as sessões dos Beatles, no dia 01 de abril de 1970, Spector reuniu uma orquestra de 34 peças, com violinos, violoncelos, violas, trompetes e harpa, além de um coro feminino de 18 vozes! De modo totalmente incomum para uma sessão dos Beatles, Spector até colocou dois guitarristas anônimos para substituir os mínimos movimentos de Harrison na gravação original.
E como a orquestra dava mais força à canção, Ringo Starr regravou sua bateria com mais força e movimento, tocando junto com a orquestra, sendo o único Beatle a participar dessa sessão. Na mixagem, as contribuições da banda ficaram em segundo plano em relação ao overdub.
E apesar de McCartney reclamar e exigir que uma série de modificações fossem feitas, ele foi “voto vencido” e o disco saiu em maio de 1970 como Spector o arranjou.
Para fins e efeitos, a última sessão dos Beatles de modo oficial foi essa gravação de orquestra, sem participação dos Beatles (exceto Starr) para cobrir o que a banda tinha feito.
Bônus:
Depois do fim dos Beatles em 1970, apesar de muitas rusgas, os membros da banda até que continuaram a trabalhar juntos de modo ocasional. Especialmente nos anos 1970, tivemos várias “quase reuniões” dos Beatles.
Por exemplo, quando John Lennon foi gravar seu single solo Cold turkey, em setembro de 1969 (poucos dias depois de anunciar que estava fora dos Beatles), ele chamou Ringo Starr para a bateria.

John Lennon convidou George Harrison para tocar em seu terceiro compacto solo, Instant Karma!, lançado em 1970, mais ou menos na época do álbum Let it Be. Para o primeiro álbum completo de Lennon, Plastic Ono Band, lançado em fins de 1970, é Ringo Starr quem providencia a bateria em todas as faixas. E Harrison toca guitarra solo em metade das faixas do álbum Imagine, de Lennon, de 1971.
George Harrison lançou seu primeiro disco solo, All Thing Must Pass, no fim de 1970 e foi um sucesso esmagador. Ringo Starr toca bateria em mais ou menos metade das faixas e John Lennon também participa de pelo menos uma delas.

Harrison ajudou bastante a carreira de Ringo Starr e lhe deu de presente duas composições suas que foram sucesso na voz do baterista em sua carreira solo: It don’t come easy, em 1971, e Photograph, em 1973. No álbum Ringo, de 1973, todos os outros ex-Beatles (Lennon, McCartney e Harrison) participam, ainda que em faixas separadas. Mas, I’m the greatest, de autoria de Lennon, traz Starr, Lennon e Harrison tocando juntos, com Klaus Voormann no baixo.
Lennon também compôs Goodnight Vienna para o disco de Starr de 1974 e também participou do disco de 1976 do baterista. Starr tocou em vários dos discos de Harrison.
Entretanto, afora as contribuições – muito esporádicas – com Starr, McCartney não trabalhou de verdade nem com Lennon nem com Harrison ao longo dos anos 1970. (Para dizer a verdade, Lennon e McCartney gravaram juntos uma versão de Stand by me em 1973, mas infelizmente, todos os músicos estavam chapados e bêbados e o resultado é horrível e nunca foi lançado).
Isso só mudou após o assassinato de Lennon por um fã com problemas mentais em 08 de dezembro de 1980. Para homenagear o amigo, Harrison compôs a canção All those years ago e a gravação traz Starr na bateria e McCartney no baixo e vocais, ainda que este tenha gravado sua participação em separado. Harrison e Starr continuaram com contribuições mútuas, inclusive, no álbum Cloud Nine, de 1987, grande sucesso do guitarrista.
Harrison também morreu em 2001, vítima de um câncer.
Todavia, poderíamos dizer que houve outras “últimas gravações dos Beatles” mesmo após a morte de John Lennon.

O projeto The Beatles Anthology
A ideia de uma autobiografia dos Beatles em filme, ou seja, um documentário narrado em primeira pessoa, era tão antiga quanto o fim da banda: já em 1970, o então presidente da Apple Corps., Neil Aspinal (antigo motorista e roadie do grupo) elaborou o projeto The Long and Winding Road – aproveitando o título do último single da banda a chegar ao N.º 1 nos EUA. Mas o ressentimento entre os membros da banda e os processos judiciais o tornaram impossível. A ideia foi requentada nos anos 1980, após a morte de John Lennon, mas não foi adiante por mais problemas judiciais entre os ex-membros.
Mas com a solução deles e de um entrevero com a Apple de Steve Jobs (que fundou uma empresa com o mesmo nome da companhia dos Beatles!), em 1993, o caminho ficou livre para o documentário, que foi batizado de The Beatles Anthology e formatado como uma série de TV em cinco episódios. Para servir de trilha sonora, a banda aproveitou para lançar três CDs duplos com material inédito, entre gravações demo, sobras de estúdios, versões alternativas de canções famosas, apresentações ao vivo e até pontuais mixagens distintas das versões lançadas.
Aspinal – ainda o presidente da Apple – e outros executivos botaram lenha em Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr para que o trio produzisse música nova para a trilha sonora do documentário e McCartney logo teve a ideia de criar versões instrumentais de canções como Let it be, mas Harrison vetou, pois disse que não haveria canções novas dos Beatles sem John Lennon.
O que fazer então?
George Harrison e Neil Aspinal, então, perguntaram a Yoko Ono, viúva de Lennon, se havia alguma canção inédita de Lennon que os demais Beatles pudessem complementar, com vozes e instrumentos. Aproveitando a ocasião da inclusão de John Lennon no Rock’n’Roll Hall of Fame, em janeiro de 1994, Yoko entregou pessoalmente para Paul McCartney meia dúzia de fitas K7 com gravações demo que Lennon registrara em casa antes de morrer, com canções que nunca gravou em estúdio.
Dentre as canções, sabemos que estavam com certeza Free as a bird, Real love, Grow old with me e Now and them (I miss you), mas pode ter havido outras. O grupo só descobriu depois que Real love e Grow old with me já tinham sido lançadas (na trilha sonora do documentário biográfico John Lennon – Imagine, de 1988, e no álbum Milk and Honey, de 1983, respectivamente). Isso parece ter decepcionado o trio remanescente, de modo que a totalmente inédita Free as a bird foi escolhida como a carro-chefe do projeto.

Free as a bird
John Lennon gravou Free as a bird como uma peça de voz e piano em um gravador de fita portátil em cima do instrumento. Era uma canção inacabada, com um par de versos (ou um refrão de dois estrofes) e um middle eight (ponte) com letra incompleta, bastante melancólica, apesar de falar de liberdade. Foi registrada em seu apartamento no edifício Dakota, em Nova York, por volta de 1977, durante o período de cinco anos que o músico ficou sem gravar oficialmente (1975-1980), para se dedicar à criação do filho Sean. Provavelmente, fazia parte das canções que estava criando para um musical para a Broadway chamado The Ballad of John & Yoko, que narraria a vida do casal, mas que nunca concluiu. Essa informação nos faz pensar que a letra trata do momento de separação do casal por 18 meses, no que ficou conhecido como “the lost weekend” (o final de semana perdido), entre 1973 e 75.
A entrega dos tapes foi pública, para que a imprensa a registrasse, mas McCartney se reuniu com Ono e Sean (que tinha então 18 anos), no dia seguinte, para ouvir as canções. O ex-beatle afirmou mais tarde que pediu “autorização” a Sean, pois não sabia qual seria o impacto emocional de ouvir uma canção nova de seu pai. Mas Yoko e o rapaz deram o aval sem dificuldades. Ainda assim, McCartney deu à família Lennon a condição de aprovar ou não o resultado final:
Eu disse pra eles dois: “se não funcionar, vocês podem vetar [o lançamento]”. Quando eu disse a George e Ringo que eu concordava com aquilo, eles disseram: “O quê? E se a gente amar [o resultado]?”. Não chegamos a isso, por sorte! Eu disse a Yoko: “Não imponha muitas condições para nós. É muito difícil fazer isso, espiritualmente. Nós não sabemos… podemos odiar uns aos outros depois de duas horas no estúdio e simplesmente ir embora. Então, não imponha nenhuma condição… já é difícil o bastante [sem isso].
O plano traçado por McCartney, Harrison e Starr era, inicialmente, tocar e cantar “por cima” da gravação de Lennon, mas a fita estava em más condições, com muitos chiados e problemas de volume e um tempo irregular, afinal, ninguém se preocupa em seguir um tempo correto quando grava uma demo apenas para registrar as ideias e não esquecer da música. O trio viu, então, que era preciso algo mais profissional e tinha que elaborar um plano.
McCartney queria que George Martin, o produtor das gravações dos Beatles nos anos 1960, fosse o produtor da gravação, mas Martin já estava com a idade muito avançada e com problemas de audição e declinou do convite. Ele assumiria a coordenação da parte musical do projeto Anthology, embora recorrendo ao auxílio fundamental de seu filho, Giles Martin como seu “ouvido de confiança”. Para assumir a função, então, Harrison insistiu em Jeff Lynne, vocalista e guitarrista da banda Electric Light Orchestra (ELO) e que havia produzido seu álbum solo, o grande sucesso Cloud Nine, de 1987, e desde então, era seu parceiro também de composição e os dois tinham feito parte da banda sensação Travelin’ Willburys, que reunira também Roy Orbison (de Pretty woman), Bob Dylan e Tom Petty, entre 1989 e 1990.

A escolha de Lynne mostra um certo cabo de força entre McCartney e Harrison e parece claro que McCartney jamais escolheria um produtor com o qual não houvesse trabalhado antes, mas no fim das contas, querendo que o projeto funcionasse, o baixista terminou cedendo e gostando da experiência, posteriormente.
Talvez para balancear as coisas, McCartney conseguiu que Geoff Emerick fosse o engenheiro de som da gravação, auxiliado por Jon Jacobs. Emerick fora assistente de engenheiro nas primeiras gravações dos Beatles e assumiu a função de engenheiro a partir do álbum Revolver (1966), sendo uma força fundamental no experimentalismo do grupo e em sua qualidade sonora, se tornando em uma peça fundamental do som da banda. Após o fim do grupo, Emerick trabalhou diversas vezes com McCartney em sua carreira solo, inclusive, no célebre álbum Band on the Run (1973).
Como forma de garantir total privacidade à banda – e talvez um pouco de controle a McCartney – foi escolhido o estúdio do baixista em sua residência rural em Sussex, na Inglaterra, e as sessões ocorreram entre os meses de fevereiro e março de 1994.
A estratégia montada para que as gravações funcionassem era a de McCartney, Harrison e Starr fingindo que Lennon estava vivo e saíra para tomar um chá ou saíra de férias e teria dito: “rapazes, essa música está quase pronta, por favor, a terminem pra mim, ok?”. Era uma forma de se sentirem confortáveis mexendo numa faixa do colega morto e, ao mesmo tempo, não assumirem uma postura reverente demais (à sua memória) que atrapalhasse o trabalho.

Antes disso, Jeff Lynne e Geoff Emerick trabalharam por algumas semanas na demo de Lennon, tentando melhorar a qualidade sonora e a transferindo para uma fita magnética profissional de gravação. A dupla recortou os vários trechos da canção e o sincronizaram com um metrono para que o tempo fosse corrigido. A voz e o piano de Lennon estavam registrados em um único canal e não havia como separá-los na tecnologia da época. O resgate da qualidade não foi total e o vocal de Lennon soa meio destorcido, com um phasing inerente ao modo rudimentar a como foi registrada, contudo, isso adicionou ainda mais tristeza à canção. O fato de seu piano estar presente também foi visto como algo positivo, pois isso indicava uma “real” participação do músico na canção, inclusive, nas partes em que não cantava.
McCartney e Harrison pegaram o trecho do middle eight na qual Lennon não havia completado a letra e decidiram criar novos versos, o que garantia uma participação composicional de ambos na faixa e a possibilidade de cada um cantar um trecho, dando a dimensão de banda mais do que apenas acompanhantes de Lennon. McCartney canta na primeira vez em oito versos e Harrison canta na segunda em apenas quatro versos, abrindo para o solo, que foi feito com a guitarra slide num efeito muito climático.

Até aquele ponto, McCartney e Harrison nunca haviam composto uma canção juntos, e fazerem os novos versos juntos foi uma novidade. McCartney contou em uma entrevista que precisou a aprender a aceitar Harrison cortando os versos que escrevera, o que denota uma pequena tensão entre os dois. Apesar disso, os relatos dos três Beatles e de Lynne sempre foi de que as novas sessões foram muito tranquilas, animadas, engraçadas e emocionais.
Por cima da voz e piano de Lennon, McCartney gravou um segundo piano (para reforçar o som) e um órgão hammond para dar uma cama sonora constante, além de seu baixo. McCartney e Harrison gravaram violões para reforçar o andamento rítmico e Harrison adicionou pelo menos três tipos de guitarras diferentes, duas delas, instrumentos clássicos dos tempos dos Beatles: a guitarra de 12 cordas Rickenbaker que usou especialmente entre 1964 e 65 (em canções como A hard days night), que aparece em alguns trechos dedilhados no meio da canção; e a Fender Stratocaster pintada em cores psicodélicas, apelidada de Rocky, na qual fez o solo em slide. Também há uma terceira guitarra na qual se faz tanto ritmo quanto algumas frases, talvez uma Gibson Les Paul, mas nunca ficou esclarecido (e pode ser Lucy, a guitarra que ganhou de Eric Clapton e com a qual gravou o solo de Something, por exemplo). Harrison adicionou também um ukelele (um tipo de cavaquinho havaiano) para a coda final para dar um ar meio de brincadeira ao fim e remeter, de algum modo, ao fato de que Lennon tocava banjo quando era adolescente. Uma homenagem ao seus inícios.
O ukelele foi usado para finalizar a canção (o que ficou ótimo para o videoclipe) e a banda pegou uma frase de Lennon, tirada de uma entrevista, para fazer uma “mensagem escondida”. Segundo eles, a frase dizia “turned out nice again” (acabou sendo legal de novo), mas a colocaram tocada de trás para frente como costumavam fazer nos anos 1960, e incrivelmente, o som resulta em algo muito parecido com “made by John Lennon”. Algumas pessoas ficaram céticas à “mágica coincidência”, mas para “provar” o fato, quando a faixa foi remasterizada para o lançamento do DVD e Blu-ray 1+, em 2015, trocaram a frase para a rotação normal e pode-se ouvir “turned out nice again”.
A bateria de Ringo Starr é reta, sem muitas viradas e firulas, o que é um pouco decepcionante. Ele também adicionou um pandeiro que faz par ao ritmo dos violões. Harrison e McCartney fazem vocalizações durante o solo de guitarra e backing vocals aos versos de Lennon, num efeito muito bom e típico dos Beatles. McCartney também registrou o vocal principal em toda a canção, que foi mixado mais baixo para servir como um tipo de reforço à voz de Lennon, que não fora gravada com os recursos típicos de um estúdio. No último estrofe, a mixagem faz essa voz de fundo ficar mais aparente, preparando o caminho para o fim.
A ideia desde o início era que Free as a bird soasse no fim como uma canção dos Beatles e todos ficaram muito satisfeitos com o resultado final. Eles evitaram usar tecnologia da moda e usaram recursos (e instrumentos) vintage, de modo ao som não ficar datado. E funcionou.

A canção estreou primeiro na TV, abrindo o primeiro capítulo da série documental The Beatles Anthology, exibida na ABC dos EUA e, uma semana depois, na ITV no Reino Unido no fim de novembro de 1995. O single (na verdade, um EP com 4 faixas) foi lançado em 04 de dezembro de 1995 e chegou ao 2º lugar na UK Official Chart no Reino Unido e em 6º lugar na Billboard Hot 100 dos EUA, dois resultados excelentes, fez sucesso no mundo inteiro e foi elogiada pela crítica. Ela também serviu como faixa de abertura do CD The Beatles Anthology Vol. I, lançado no mesmo mês.
O videoclipe de Free as a bird é uma verdadeira obra-prima, passando a ideia de um pássaro saindo de dentro de uma casa e voando pela cidade enquanto flagra os Beatles em vários momentos de sua vida. O interessante é que foram usados efeitos especiais para incluir filmagens dos Beatles dentro de cenários cotidianos, como em meio a trabalhadores no porto, transeuntes na rua, no meio da multidão assistindo as consequências de um acidente de carro, numa festa etc. O clipe inteiro é cheio de referências, com cada cena remetendo a alguma canção ou letra dos Beatles. O vídeo foi exibido pela primeira vez na abertura do documentário The Beatles Anthology, em novembro de 1995.
Como já escrevemos, quando do lançamento do DVD/Blu-ray 1+ com uma coletânea dos videoclipes da carreira da banda, em 2015, o produtor Giles Martin e Jeff Lynne remasterizaram a faixa e mudaram algumas coisas: corrigiram mais ainda os vocais de Lennon (tirando alguns ruídos), deram mais destaque ao vocal de McCartney no segundo estrofe, mudaram o som de algumas guitarras e trocaram os vocais de Harrison no middle eight, alterando um pouco a letra. Também trocaram a frase de trás para frente para sua rotação normal, deixando de soar como “made by John Lennon” para “turned out nice again”.
Real love
Dentre as mais ou menos seis faixas que tinham de gravação demo de Lennon, o grupo decidiu usar Real love como a segunda faixa a reunir os Beatles.
McCartney, Harrison e Starr decidiram esperar quase um ano para decidir se fariam ou não mais faixas seguindo o mesmo esquema de gravar por cima de demos de Lennon. A ideia era que cada um dos três volumes da série Anthology em CD trouxesse uma faixa nova. A canção escolhida foi Real love, outra peça de voz e piano.

A história de composição de Real love é bem mais complexa do que sua antecessora. Lennon a criou primeiro como uma faixa chamada Real life também para o musical The Ballad of John & Yoko em 1977. Existe um registro demo ao piano e voz dessa faixa e é possível perceber que ela possuí elementos de Real love (como o refrão – embora usando “life” e não “love”), mas a estrutura dos versos e da letra terminariam transformadas em outra canção: I’m stepping out, que terminaria lançada – como uma gravação profissional com banda completa – no álbum póstumo Milk and Honey, de 1983.
Lennon refez Real love e criou duas versões diferentes da canção. Não é muito claro qual delas ele considerava a final, mas uma foi gravada em outubro de 1979 e outra em julho de 1980. Os registros oficiais indicam que os Beatles usaram a versão de 1979, que fora gravada com voz, piano e bateria eletrônica; e Yoko Ono lançou oficialmente a versão de 1980, gravada apenas com voz e violão, na trilha sonora do documentário biográfico John Lennon – Imagine, de 1988. Existem diferenças na letra e na estrutura e a versão de 1980 tem um middle eight ausente na anterior.
Por sua vez, a versão de 1979 é mais elaborada musicalmente, pois possui um arranjo bem construído de piano com introdução e solo. Todavia, a fita que Yoko Ono entregou aos Beatles é uma versão que traz uma gravação demo com voz, piano e uma bateria eletrônica com uma qualidade de som muito deficitária e muito pior do que a de Free as a bird. Isso é curioso porque, posteriormente, Ono lançou outra variação de Real love no mesmo arranjo daquela dos Beatles, mas apenas com voz e piano e sem a bateria eletrônica (em John Lennon Anthology, de 1999). Não está claro se são versões diferentes da mesma gravação ou takes distintos.
A banda de novo foi para o estúdio de McCartney em Sussex, agora em fevereiro de 1995, e de novo, Jeff Lynne trabalhou na faixa duas semanas antes para prepará-la para gravação. Ele teve mais trabalho com Real love, pois o registro tinha uma qualidade de áudio pior, com muito chiado e até o barulho da rotação da fita aparecendo na gravação. Ele acha que a fita que receberam era, pelo menos, de “segunda geração” (ou seja, uma cópia do original gravado em outro gravador), o que adicionou ainda mais ruído. Lynne gastou uma semana usando os mais modernos redutores de ruído do mercado para deixar a gravação minimamente limpa para o trabalho dos outros. O tempo dessa vez era menos problemático, pois Lennon usara uma bateria eletrônica para marcar o ritmo, mas isso tornava impossível isolar essa marcação. E pior: o som agudo da marcação ganhava destaque no áudio. Para escondê-la, Ringo Starr toca um pandeiro com pele por cima dos toques da bateria eletrônica durante toda a faixa, desde a introdução até o fim.

McCartney e Harrison ficaram preocupados porque Real love tinha um andamento ainda mais lento do que o de Free as a bird, o que poderia desencadear uma balada melosa, por isso, decidiram acelerar o ritmo. Infelizmente, pela tecnologia da época, uma vez que a fita foi acelerada, isso alterou a voz de Lennon, que ficou mais aguda, e aumentou o tom da faixa de Ré para Mi bemol. No resultado final, a voz de Lennon ficou muito esquisita, como um falsete, e isso depõe demais contra a qualidade da canção. O efeito ficou ainda mais evidente quando, três anos depois do lançamento da versão dos Beatles, Yoko Ono lançou uma versão de Real love com Lennon na voz e piano (e sem a bateria eletrônica) e no andamento original, mostrando uma beleza incrível tanto da faixa quanto de sua voz, mesmo sendo uma gravação demo.
Por outro lado, ser uma faixa completa, inclusive com uma introdução elaborada, permitiu aos Beatles usarem um arranjo mais dinâmico do que de Free as a bird. A introdução de piano de Lennon foi reforçada por um cravo (harpchord) tocado por McCartney, que também adicionou um harmonium (um tipo de órgão, tal qual usado em We can work it out, de 1965) de fundo, marcando a nota. Ele usou um Fender Jazz Bass, um instrumento que raramente usou nas sessões originais dos Beatles (nas quais sempre usava um Hofner – aquele em formato de violino – ou um Rickenbaker) e também adicionou algumas passagens em um contrabaixo acústico histórico: o mesmo usado por Bill Black nas primeiras gravações de Elvis Presley, que tinha comprado em um leilão. Como em Free as a bird, McCartney e Harrison gravaram violões para o ritmo, embora dessa vez eles estejam menos evidentes.
Harrison de novo gravou várias guitarras, mas dessa vez usando uma miríade ainda maior de instrumentos, mantendo a Rickenbaker de 12 cordas e a Fender Stratocaster psicodélica Rocky para o slide. Dessa vez, ele criou várias frases diferentes para os intervalos entre os versos e estrofes e fez um solo mais agressivo, com dedilhados e não em slide. A bateria de Starr também é bem mais dinâmica, com várias frases e viradas, o que é muito bem-vindo.

Como na anterior, McCartney e Harrison fizeram os backing vocals aos versos de Lennon, mas dessa vez, McCartney não gravou o vocal principal, pois era meio impossível acompanhar o agudo falsete de Lennon que resultou da aceleração da faixa. Como a gravação demo original estava completa, também não foi necessário escrever nenhum verso, o que deixou a autoria da faixa apenas para Lennon.
Esse aspecto mais finalizado da canção terminou contando contra a experiência: em médio prazo, McCartney e Harrison sentiram que Real love terminou menos como uma faixa dos Beatles e mais como eles servindo de banda de apoio para Lennon. Tal sensação esfriou os ânimos do grupo em tentar fazer a prometida terceira faixa inédita.

Real love não foi recebida com o mesmo frenesi de Free as a bird – sempre pensei que o arranjo mais pop e a voz em falsete contribuíram para isso e que se eles a gravassem no andamento original e fizessem um arranjo meio blues e jazz, com a voz grave de Lennon (o que abriria espaço para mais backing vocals ou vocais dos outros teriam tido mais êxito). A canção foi ouvida primeiro no documentário Anthology, em novembro de 1995, e saiu como single em 04 de março de 1996 e chegou num resultado um pouco abaixo da anterior: 6º lugar na UK Official Charts e 11º lugar na Billboard Hot 100.
Na Inglaterra, pesou contra Real love o fato da principal rádio do país, a estatal BBC 1, resolver tirá-la da radiodifusão, alegando que não era “música contemporânea”, o que foi entendido como um boicote injustificado e gerou reclamações da imprensa e até do Parlamento Britânico. O fato é que sem tocar na rádio – como Free as a bird fizera com bastante sucesso – a popularidade de Real love não durou e ela logo saiu das paradas.
A canção ganhou um videoclipe – que encerra o documentário The Beatles Anthology – na qual se misturam cenas da gravação da faixa em 1995 com imagens dos Beatles ao longo de sua carreira e uma nova filmagem de efeitos especiais com seus instrumentos musicais e roupas sobrevoando Londres e Liverpool.
Quando o DVD/Blu-ray de 1+ foi lançado em 2015, o vídeo de Real love trouxe uma versão remasterizada da faixa com ainda mais intervenções do que Free as a bird: os vocais foram melhorados (e se corrigiu a maior parte do falsete da original, deixando a voz de Lennon um pouco mais natural – pois a tecnologia digital permite (ao contrário das fitas) a alteração da velocidade sem alterar o tom do registro (que ficava mais grave quando desacelerado e mais agudo quando acelerado); mas também se incluíram novos trechos de guitarra, substituíram alguns antigos e acrescentaram mais viradas de bateria. O vídeo de Real love também foi modificado, incluindo mais cenas das esposas dos Beatles para contrapor a presença de Yoko Ono ao lado de Lennon em várias filmagens.
Também como Free as a bird, porém, a versão 2015 de Real love está disponível apenas em vídeo (no DVD/Blue-ray, no Youtube, e no Vero), mas nunca foi lançada em disco ou streaming.
Now and Them
Os Beatles ainda iniciaram os trabalhos no que deveria ser a terceira faixa inédita do projeto Anthology. Aparentemente, a banda não julgou Grow old with me forte o suficiente e também pesou contra o fato dela já ter sido oficialmente lançada no álbum Milk and Honey em sua versão demo. Segundo o encarte daquele disco, Grow old with me foi a última gravação de Lennon, realizada em dezembro de 1980, alguns dias antes de seu assassinato no dia 08 daquele mês.

A escolhida foi então Now and them, também conhecida pelos títulos I don’t wanna lose you e Miss you, uma canção de amor bastante sentida. Ao contrário de Free as a bird e Real love, não existem muitas informações sobre Now and them, se foi composta para o musical The Ballad of John & Yoko, ou era uma faixa pensada para os álbuns Double Fantasy ou Milk and Honey. Talvez seja o primeiro caso, pois aparentemente sua gravação demo é de 1978.
Now and them estava em um nível similar a Free as a bird: também tem andamento lento e letra inacabada. Mas dessa vez era uma faixa realmente com uma estrutura ainda indefinida e Lennon estava apenas esboçando suas ideias na gravação demo. Isso somado ao fato da qualidade de áudio ser ainda pior do que Real love, com mais ruído e chiado, desanimou a banda.

Os Beatles e Jeff Lynne se reuniram nos estúdios de Sussex, em março de 1995, um mês depois das sessões de Real love, mas naquele ponto, George Harrison tinha se cansado da brincadeira e alegou não gostar da canção e não estar disposto a ter que recriá-la. A banda esboçou um acompanhamento (bateria, violões e guitarra), mas a faixa foi abandonada depois de dois dias de trabalho e não houve, portanto, uma terceira faixa inédita.
Isso é curioso, pois uma das queixas alegadas contra Real love foi justamente o fato dela já ser uma faixa “pronta” e Now and them, em seu estado inacabado, daria espaço para ainda mais intervenção e criação de McCartney e Harrison do que em Free as a bird: eles poderiam criar versos novos, fazer novos vocais e até incluir partes novas, já que a estrutura musical e a letra estavam ambos inacabados. Mas Harrison não quis fazer e o projeto foi abandonado.
A versão demo de Lennon de Now and them é bem conhecida da pirataria, mas nunca foi lançada oficialmente. E, realmente, possuía um ruído de fundo muito forte. Contudo, com o avanço da tecnologia desde a década de 1990, um fã postou uma versão restaurada da demo no YouTube com o som totalmente limpo.
Mais de uma vez desde o Anthology, McCartney manifestou o desejo de finalizar essa faixa e os fãs dos Beatles nutrem uma pequena esperança de algum dia ainda ouvirem uma versão da banda para Now and them.
Mas pensando o tópico deste post, para fins meramente cronológicos, a versão inacabada e nunca lançada de Now and them consistiria na última gravação dos Beatles.

