Nos últimos anos, alguns produtos famosos de entretenimento têm caído em domínio público, ou seja, as famílias dos criadores ou as empresas (megacorporações?) que detêm os direitos autorais sobre tais personagens (e histórias) perdem a exclusividade de propriedade e, hipoteticamente (com ênfase no hipoteticamente) qualquer outro produtor artístico pode fazer uso de tais propriedades sem pagar royalties. Chamaram à atenção os casos do Ursinho Poof e do Mickey Mouse da Disney… E em apenas alguns anos, a tríade da DC Comics irá pelo mesmo caminho, quer dizer, Superman, Batman e Mulher-Maravilha cairão em domínio público. Mas o que isso realmente significa?

A resposta simples é… ninguém sabe exatamente.
Vamos aos fatos… a Lei de Copyright dos Estados Unidos que está em vigor atualmente – e serve de embasamento para inúmeras outras leis similares em outros países do mundo – afirma que um bem cultural perde o direito de exclusividade após 95 de sua criação. Então, “hipoteticamente”, tais obras podem ser usadas, divulgadas, reproduzidas e recriadas sem necessitar de permissão ou pagar royalties.
Já vivemos isso há algum tempo, na verdade… Veja que todos os estúdios de cinema produziram uma ou outra versão do Conde Drácula, por exemplo, por quê? Porque os royalties não pertencem mais aos herdeiros de Bram Stoker que escreveu o livro original. A mesma coisa com adaptações do detetive Sherlock Holmes, criado por sir Arthur Conan Doyle. Essas obras foram originalmente publicadas em 1897 e 1887, respectivamente. O mesmo vale para histórias mitológicas, que nunca possuíram royalties, como a Mitologia Grega (da qual a série Percy Jackson se apropria) ou as histórias do Rei Arthur ou mesmo o Thor da Mitologia Nórdica (adaptado pela Marvel Comics).
A maior diferença é que os produtos culturais que criaram a indústria de entretenimento moderna, baseada na plataforma multimídia – livros, HQs, filmes, séries, desenhos animados – passarão agora pelo mesmo ciclo. Qual foi o resultado do Ursinho Poof ter caído em domínio público, por exemplo? Até agora, só estrelar um filme de terror de baixo orçamento…
O caso do Mickey Mouse, recém liberado, é o template do que acontecerá daqui em diante. E mostra como é muito complexo… O rato de Walt Disney estreou como estrela de um curta-metragem em desenho animado chamado Steamboat Willie, de 1928, e depois apareceu em outros 130 filmes, além de tiras de jornais e revistas em quadrinhos. Por ter completado 95 anos de idade, Mickey agora é de domínio público, mas não é simples assim. Afinal, por ter aparecido em um sem número de produtos, o personagem evoluiu, sua aparência mudou etc. Então, no entender da lei de copyright, apenas os elementos presentes no filme original estão isentos de royalties. Mas o que isso realmente significa? Que elementos são esses?
Aparentemente, se alguém fizer um quadrinho ou um desenho animado com o mesmo estilo de animação e os traços mais rústicos do ratinho – diferentes daquele estilo mais redondinho que conhecemos hoje – estaria isento de pagar os direitos autorais à Disney. Mas…
Não é tão simples, pois Mickey Mouse não é apenas um personagem… é uma marca registrada. E marcas registradas não vencem. Então, o tal adaptador do exemplo provavelmente não poderia usar o nome do personagem. Mas poderia usá-lo de todo? A Disney poderia processá-lo? Talvez… Alguém, um pequeno produtor independente, arriscaria um processo de milhões de dólares da maior gigante do entretenimento para produzir “seu” filme do Mickey?

São exatamente as mesmas questões que se impõem no caso de Superman, Batman e Mulher-Maravilha, criados nas revistas da DC Comics em 1938, 1939 e 1941, respectivamente, e portanto, entrarão em domínio público em 2034, 2035 e 2037. O mesmo vale para seus coadjuvantes: Lois Lane (1938/2034), Coringa e Lex Luthor (1940/2036) e assim por diante.

Mais do que o Mickey… esses super-heróis têm uma série de distinções ao longo das décadas em que foram criados. Além de um sem-número de variações, os personagens em si mudaram tanto em aspecto de personalidade, de narrativa e até de visual ao longo das mais de oito décadas que estão em publicação. O Superman de 1938 não voava (apenas dava grandes saltos), não tinha visão de calor nem de raio X, não era totalmente invulnerável e sua roupa era diferente, não era o S estilizado que estamos acostumados. Lex Luthor era um almofadinha com cabelos ruivos nas primeiras aparições. Batman não tinha a elipse amarela no peito nem as luvas com barbatanas e a Mulher-Maravilha usava sandálias e não botas.
Provavelmente, esses elementos poderiam ser usados por algum outro produtor daqui há pouco mais de uma década quando caírem no domínio público, mas de novo, alguém irá arriscar?
Provavelmente, o uso terá que ser ostensivo em relação a essas características. Por exemplo, se alguém escrever um quadrinho com aquele Batman de 1939, mas citar a Batcaverna, por exemplo, receberá uma notificação da DC Comics/Warner, pois a Batcaverna não estará em domínio público ainda, nem o Batmóvel ou mesmo a Cobertura Wayne. O nome Batman também não poderá ser usado, pois ele é uma marca registrada.
Então, o mais provável – e isso é um conclusão temporária, pois os termos da aplicação real da lei ainda não são claros para ninguém – o único uso possível será bem restrito. Por exemplo, uma lanchonete de bairro de uma grande cidade do mundo poderá ostentar as versões gráficas desses personagens como símbolo, logomarca ou garoto/a-propaganda sem infringir a lei, como já é feito hoje, mas embora hoje seja ilegal, é preciso que a megacorporação saiba que num bairro da periferia de São Paulo, Rio de Janeiro ou Fortaleza exista um muquifo de esquina que os use, o que muitas e muitas vezes não ocorre. Uma empresa vagabunda de brinquedos poderá produzir bonecos dessas versões desses personagens, desde que não os nomeie, mais ou menos como aqueles produtos chineses genéricos já infestam as bancas de camelôs de qualquer grande cidade brasileira.
Ou seja, talvez não mude nada.
Porque é fato que essas megacorporações irão brigar com tudo para manter o controle sobre suas propriedades e, sob a alegativa da marca registrada, provavelmente irão impedir qualquer uso significativo e substantivo desses personagens.

A menos que… Bom, há alguns anos, a família do escritor Jerry Siegel, o criador do Superman, processou a Warner/DC por uma disputa de direitos autorais. Aqui é outra questão: segundo a lei dos EUA, produtos como o Superman (e os heróis da DC ou Marvel) são considerados work for hire, ou seja, trabalhos de encomenda. Quer dizer, uma empresa contrata o artista para produzir um produto específico (como uma logomarca, por exemplo), e o produto é propriedade da empresa, não do artista. A indústria de quadrinhos sempre se baseou nessa prerrogativa, porque os personagens eram criados nas redações das editoras, sob a supervisão dos editores etc. Em resumo, o Superman era da DC não de Siegel.

Porém, o processo da família Siegel – o artista morreu em 1996 – conseguiu provar judicialmente aquilo que qualquer historiador de quadrinhos e estudioso do tema já sabia há décadas: Siegel criou o Superman antes de vendê-lo à DC. Então, não pode ser um “trabalho de encomenda”. O processo até provou que o desenhista Joe Shuster não teve papel na criação do personagem (o visual também é de Siegel!), mas a DC continua a creditar o personagem à dupla. Ninguém quis mexer nisso.
O resultado do processo foi um acordo extrajudicial cujos os termos exatos, claro, nunca foram divulgados, mas as declarações oficiais diziam que a família Siegel tem os direitos sobre elementos originais do personagem (incluindo sua história de origem) e isso rende mais royalties para eles.
Bom, então, de volta ao tópico: e se a família Siegel decidisse produzir a sua versão do Superman? Tendo provado que ele foi criado fora da DC e com o personagem em domínio público, como a empresa poderia alegar “marca registrada” contra esse uso? Ainda mais se realizado pelos herdeiros do criador? Resposta: não sabemos. Advogados nos ajudem!
Praticamente a mesma coisa pode acontecer com os outros personagens citados, com a diferença, nos casos de Batman e Mulher-Maravilha, que não sofreram processos familiares similares. No caso do homem-morcego, ao contrário de seu amigo de Krypton, o cocriador Bob Kane fez um acordo com a DC ainda nas décadas de 1940 ou 50 que lhe reteve direitos autorais pelo resto da vida, então, ele nunca precisou processar a companhia – algo que Siegel e Shuster tiveram que fazer várias vezes. O outro criador do Batman, o escritor Bill Finger, apesar de reconhecido historicamente pelo feito, só ganhou o crédito oficial em 2015 mediante processo judicial similar.
Estamos falando da DC Comics, mas não é algo diferente do que ocorrerá um dia com a Marvel. A maior diferença é que a maioria dos personagens da Marvel é bem mais jovem – criados a partir dos anos 1960 – portanto, demorarão mais 30 anos para chegar ao ponto do domínio público. Apenas alguns são mais antigos, como é o caso do Capitão América, criado em 1941, e portanto, perdendo o copyright a partir de 2037. Dos dois criadores, a família de Jack Kirby já moveu um processo contra a Marvel e fez um acordo extrajudicial. Não sabemos se algo similar fora feito sobre o outro criador, Joe Simon.

