Não é de hoje que o Brasil se torna um palco privilegiado de artistas de renome nacional. Falando especificamente do rock, esse movimento inicia-se, ainda timidamente, nos anos 1970, quando artistas como Joe Cocker e o tecladista (da banda Yes, mas que também fazia sucesso em carreira solo) Rick Wakeman se apresentaram em terras brasileiras pela primeira vez. Nos anos 1980, bandas como Queen e The Police colocaram o Brasil em um papel diferenciado entre os países do chamado (então) “terceiro mundo”, relatando aos seus pares a (hoje famosa) calorosidade do público tupiniquim. O Festival Rock In Rio definitivamente foi um divisor de águas. Trazendo uma dezena de grandes artistas internacionais – Queen de novo, Rod Stewart, Yes, Ozzy Osbourne, AC/DC, Iron Maiden, White Snake, Scorpions, James Taylor etc. – o evento colocou definitivamente o país na rota dos grandes astros já em sua primeira edição, em 1985. Nos dez anos seguintes, com o reforço de festivais como o Hollywood Rock, o Brasil viu o suprassumo da música internacional passar por aqui: Michael Jackson, Madona, Nirvana, Paul McCartney, U2, Rolling Stones, Bob Dylan… a lista é longa.

Freddie Mercury e o Queen tocam no Rock In Rio 1985: divisor de águas.

Nos anos 2000, a coisa mudou de figura com uma ajudinha do mercado internacional: o surgimento da tecnologia de consumo individual (e ilegal) de música por meio de arquivos digitais encolheu (e muito) o mercado de vendas de discos, o que obrigou os artistas, mesmo os de “renome internacional”, a ampliar suas turnês para viabilizar a rentabilidade de suas carreiras. Já que venda de disco não dá mais dinheiro, o jeito é ganhá-lo em shows. Assim, um Paul McCartney que vinha para o país e fazia dois shows no máximo – e no mesmo lugar, como foi no Rio de Janeiro em 1989 – passa a vir para cá e fazer quatro shows em três lugares diferentes. Artistas que não tenham mais uma boa base de mercado em termos de “sucesso” fazem até mais, verdadeiras turnês com várias datas no país, como é o caso da cantora Alanis Morissette que, em 2009, fez oito shows no Brasil.

Agora, na década de 2010, o Brasil parece estar definitivamente na agenda dos artistas internacionais. Qualquer um que se disponha a fazer uma turnê mundial – esteja fazendo sucesso ou não – termina passando por aqui. Os velhos medalhões – Paul McCartney, Bob Dylan, Rolling Stones, U2, Roger Waters, Eric Clapton – continuam vindo ao país com uma frequência animadora; outros que mantêm públicos mais específicos, como o Iron Maiden, também; bandas que estão muito longe do auge, mas se mantêm ativas por um motivo ou outro, idem, como Yes, Deep Purple, Scorpions; e até os grandes sucessos do momento, os “maiores artistas da atualidade”, fazem a mesma coisa: Foo Fighters, Arctic Monkeys, Strokes, Oasis e seu “filho” Beady Eye etc.

Dessa forma, assim como no cenário econômico internacional, “o Brasil está com a bola toda“, não? Bem, quase.

O dia de ontem, 21 de abril, Feriado Nacional de Tiradentes, o nosso mártir da Independência do Brasil, foi muito significativo das contradições pelas quais este país tão grande enfrenta. Afinal, se nos colocamos num lugar de destaque, temos que mostrar por onde e dar conta dos desafios enfrentados, de criar uma infraestrutura. No mesmo dia 21 de abril três eventos significativos ocorreram no país quanto aos shows de rock: em Recife, o ex-beatle Paul McCartney volta ao país pela terceira vez em três anos (!) para mais um braço de sua turnê Up and Coming, que já passou por aqui em 2010 e 2011; em Fortaleza, a banda carioca Los Hermanos dá prosseguimento a uma “turnê da volta”, já que a banda está, oficialmente, em hiato indefinido desde 2007; e em São Luís do Maranhão, o festival Metal Open Air fracassa miseravelmente em sua tentativa de ser um dos maiores festivais de heavy metal do planeta.

Três realidades distintas, três ensinamentos que o mundo globalizado e a realidade própria do Brasil nos têm a ensinar.

Paul McCartney no Rio em 2011.

Paul McCartney é o reflexo do fim da indústria fonográfica internacional. Junte um músico de carreira gloriosa, mas presente indiferente (pelo menos à maioria do público), mas que entretanto, é um workaholic e precisar estar na ativa o tempo inteiro e não pode ficar fazendo shows o ano inteiro em Londres, que – por mais que doa dizer isso – o vê fazendo shows constantemente há quase 50 anos! O ex-beatle tem que explorar novos mercados e descobriu na América do Sul, e particularmente no Brasil, um público sedento por artistas como ele que foram grandes em uma época na qual o Brasil não estava inserido no circuito de shows internacionais. Tal lacuna permite que venha ainda umas duas ou três vezes mais – em 2013 e 2014, por exemplo – tocando em novos lugares (agora, podia ser a vez do Pará, do Ceará, do Espírito Santo…) sem esgotar a demanda.

E pensando de modo estritamente racional, é muito bom que faça isso. Quando alguém do porte de Paul McCartney – que se não mantém o sucesso de outrora, possui uma respeitabilidde por sua obra passada quase incalculável – abre esse caminho, é bem possível a outros de seu porte – pense em Eric Clapton, que veio ao Brasil em 1993, 2001 e 2011 e poderia voltar mais vezes – façam o mesmo. Não se deve ignorar a importância de tais gestos, pois permitem a públicos que jamais entraram em contato com seus ídolos (alguns pensavam que jamais entrariam), mesmo sabendo que não estão mais na velha forma, mas o que importa? É ELE (quem quer que seja) lá em sua frente, tocando aquelas músicas que lhe emocionaram a vida inteira, aquelas com as quais construiu sua vida, com as quais namorou, sofreu, se alegrou, se confraternizou, que colocou em suas festas, escolhidas a dedo, para “animar” o ambiente, aquelas as quais aprendeu a tocar guitarra, para alimentar o próprio espírito dentro de um quarto de sua casa ou para animar outras pessoas numa roda de violão num lual na praia ou em uma pequena casa de show ou bar.

Se você mantém um elo desse tipo, que preço há em ver Paul McCartney, Rolling Stones, Eric Clapton, Roger Waters, Alanis Morrisete, The Cranberries, Chuck Berry, Men at Work, Deep Purple, Arctic Monkeys e muitos outros defronte a você?

Los Hermanos: carreira parada, shows ocasionais, mercado alternativo em ebulição.

O caso dos Los Hermanos revela outra coisa. Uma banda que não é popular no sentido amplo do termo, que não é cultivada por uma “massa” de pessoas, mas possui um nicho de mercado específico, que detém um tipo de público até pequeno, mas fiel à banda e à sua proposta e que está disposta a vê-la, quer vê-la, não importa se está “oficialmente extinta” e sequer tem material novo. Para completar os shows – e talvez incrementar a sensação, provavelmente da própria banda, de fazer “algo novo” – o Los Hermanos adicionou faixas da carreira solo de Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante.

Isso demonstra, de certa forma, o acerto do movimento alternativo no Brasil, da qual os próprios Los Hermanos foram uma parcela significativa. Independente de mídia ou “sucessos nas rádios”, existe espaço – e um espaço grande – para bandas e artistas que “corram por fora” e consigam estabelecer conectividade com um público que simplesmente gosta dele.

E o caso de Fortaleza mostra que nem é preciso muito. O show dos Los Hermanos ocorreu em uma “barraca de praia“, um daqueles estabelecimentos, um tipo de “superquiosque”, que durante o dia vendem comidas e bebdidas aos banhistas. Em ocasiões como essa, a Barraca Biruta constrói um “muro” com tapumes, coloca um palco de lado do mar e põe o público na areia mesmo, embora mimetize, do jeito que dá, a estrutura de um show em uma “casa de shows” tradicional, com direito a frontstage, pista e camarotes. Ainda assim, cabem entre cinco e dez mil pessoas e Fortaleza não possui nenhuma casa de shows sequer para um público maior que esse que queira ouvir estilos musicais como rock ou MPB. O estádio municipal só tem capacidade para cinco mil pessoas e o Estádio do Castelão está em obras para a Copa do Mundo 2014, mas de qualquer modo, antes disso também não costumava abrigar esse tipo de evento, embora pudesse. Para fazê-los, é preciso usar espaços “adaptados” como hotéis, barracas de praia ou, no máximo, as casas especializadas em forró, que são bem maiores.

Logo oficial do Metal Open Air.

É este último ponto que faz uma conexão com o último caso: o Metal Open Air em São Luís do Maranhão. Fórmula do desastre: produtoras pequenas, quase caseiras, decidem trazer os maiores nomes do heavy metal mundial para tocar; público de 20 mil pessoas por dia (!); na ausência de local adequado para o evento, posiciona-o em um tipo de haras, esquece-se de colocar banheiros químicos, cria uma área de camping dentro de um estábulo (que não foi limpo, diga-se de passagem); e arranja um tipo muito estranho de patrocinadores.

Para nivelar: O Metal Open Air estava previsto para ocorrer nos dias 20, 21 e 22 de abril em São Luís, reunindo os principais nomes internacionais e nacionais do heavy metal, numa reunião impressionante de bandas: Anthrax, Venom, Blind Guardian, Grave Digger, Megadeath, Saxon e a Rock and Roll All Stars [um coletivo impressionante que reúne nomes como Gene Simmons (Kiss), Joe Elliott (Def Leppard), Matt Sorum, Duff McKagan e Gilby Clarke (Guns N’ Roses), Glenn Hughes (Deep Purple), Ed Roland (Collective Soul), Sebastian Bach (ex-vocalista do Skid Row), Steve Stevens (Billy Idol), Mike Inez (Alice in Chains) e Billy Duffy (The Cult)]; sem esquecer uma impressionante lista de grandes nomes nacionais, como Unearthly, Expose Your Hate, Terra Prima, Shadowside,  HangarObskure, Headhunter DC, Stress e Ratos de Porão.

Cartaz com a avantajada lista de bandas do festival.

Honestamente, nem a Ozzyfest reúne nomes assim.

Mas o que sobrou de ousadia, faltou em organização: diversas bandas usaram as redes sociais – como Facebook e Twitter – para relatar aos fãs que estavam cancelando suas apresentações porque não haviam sido pagas ou porque as passagens aéreas não haviam sido emitidas. A produção do evento, capitaneada pela Negri Produções e pela Lamparina, defenderam-se dizendo que os patrocinadores não pagaram o prometido. Consequência, o evento até começou, no dia 20, mas foi marcado por ausências e atrasos. No sábado 21, já com o caos plenamente instalado, a festa estava prevista para começar às 10h da manhã, mas só o fez às 15h, prosseguindo com atrasos e ausências. Um dos palcos, inclusive, chegou a começar a ser desmontado pela empresa de som terceirizada para o evento, aleegando ausência de pagamento. O mesmo se deu com a empresa de luz. Por fim, há relatos até de briga física entre os organizadores e o cancelamento total do evento, ontem mesmo.

O que está acontecendo? Se é verdade que os patrocinadores não pagaram, como isso pode acontecer? Não há contrato para esses acordos? O que ele diz? Por que as produtoras seguiram em frente com tantos problemas? Por que não cancelaram logo o evento antes de começar?

As respostas – quando vierem e se vierem – poderiam nos ajudar a entender o que está acontecendo. Como um país que se pretende ser rota fixa dos “grandes nomes da música” pode produzir aberrações sinistras como essas do Metal Open Air?

A ideologia punk é o “faça você mesmo“, que já se sabe, é a mola propulsora dos eventos roqueiros de médio e pequeno porte no Brasil. São os próprios roqueiros, são as próprias bandas, que organizam eventos que as possibilitem tocar e que tragam artistas de “renome internacional” para eles. Festivais bem-sucedidos nacionalmente, como o Abril Pró-Rock, Festival do Sol, Forcaos etc. são tocados pelos próprios roqueiros quase sempre em um esquema “faça você mesmo”.

Público do Metal Open Air: adivinha quem paga o pato?

Contudo, “faça você mesmo” é bem diferente do “faça de qualquer jeito“. Os festivais bem-sucedidos sabem disso. É preciso responsabilidade por parte dos organizadores. Imprevistos acontecem, uma banda importante, um headline, pode cancelar uma apresentação na véspera, por motivos variados; mas 20 bandas cancelarem na véspera não é imprevisto: é caos, é total desorganização, é desrespeito com o fã.

Sim, o fã. Este cara será o grande prejudicado pelo “legado” do Metal Open Air. Aquele carinha que juntou suas economias para ver seus ídolos lá no Maranhão. Aquele jovem que saiu de Porto Alegre, viajou seis horas de avião, fez conexão, para ir dormir em uma barraca de camping e curtir três dias de sua música favorita. Esse cara, esse fã, vai (e já está) “pagando o pato”. Não basta ter o dinheiro do ingresso de volta. E as passagens aéreas? A alimentação, hospedagem etc. E o orgulho?

O problema com a desorganização de eventos como esse é justamente o elo fraco. Aquele que vai pagar por tudo o que der errado.

E esse elo fraco é o fã. Mas é ele quem sustenta essa coisa toda, não?