
Os rumores começaram rápido esta semana e dois dias atrás foram confirmados: a diretora Ava DuVernay (de Selma – A Luta pela Igualdade e Uma Dobra no Tempo) irá dirigir um filme sobre os Novos Deuses, universo de personagens cósmicos criados por Jack Kirby para a DC Comics. Também foi confirmado que o roteirista será Kario Salem (de Tudo por um Sonho e A Cartada Final).
Foi uma grande notícia, afinal, Novos Deuses é uma história mitológica impressionante, cheia de grandes personagens, conceitos enlouquecedores e um visual arrebatador! Foi a grande criação autoral de Jack Kirby, desenhista mais famoso por ter criado o Universo Marvel ao lado de Stan Lee.
Ava DuVernay é uma ótima diretora e chamou bastante atenção por seus dois filmes citados, com obras de cunho social e político fortes. A diretora, inclusive, foi a primeira escolha da Marvel para dirigir Pantera Negra, mas as partes não chegaram a um acordo sobre a história e o filme de T’Challa, rei de Wakanda, terminou nas mãos de Ryan Coogler e virou um fenômeno na bilheteria. Não à toda, a concorrência estar de olho nela também.
Fazer um filme sobre os Novos Deuses também dá ótimas pistas de quais os caminhos quer percorrer a DC Comics. Após o fracasso retumbante de Liga da Justiça nos EUA (lembrando outra vez, o filme foi muito bem no restante do mundo, mas naufragou completamente na terra-natal) e o descontentamento geral com o Universo DC dos Cinemas, que com uma penca de filmes (Superman – O Homem de Aço, Batman vs. Superman – A Origem da Justiça, Esquadrão Suicida e Liga da Justiça) só conseguiu agradar público e crítica com o longa solo da princesa amazona – que por sinal, foi dirigido por uma mulher. [Outro detalhe curioso de dança das cadeiras: antes do megahit com Mulher-Maravilha, a diretora Patty Jenkins quase comandou Thor – O Mundo Sombrio para a concorrente Marvel].
Fazer Novos Deuses mostra que a DC está disposta a alargar as fronteiras de seu universo cinematográfico e ficar menos dependente do núcleo central da Liga da Justiça que, por uma série de razões, não conseguiu emplacar nesta década.

Jack Kirby e Stan Lee criaram o universo Marvel entre 1961 e 1970, com o segundo criando histórias, escrevendo roteiros e o segundo também criando conceitos e desenhando. Das mãos habilidosas de Lee e Kirby saíram quadrinhos como Quarteto Fantástico, Hulk, Thor, Homem de Ferro, X-Men, Vingadores e as aventuras solo do Capitão América. Personagens coadjuvantes que depois brilhariam com luz própria, como Pantera Negra, Surfista Prateado e Nick Fury também foram criados pela dupla na revista do Quarteto.



Kirby era fascinado por mitologia, por isso, se interessava muito em trabalhar o lado mais mitológico do Universo Marvel, desenvolvendo conceitos como o de Galactus, o devorador de mundos; os Inumanos; e, claro, todo o mundo ao redor de Thor, baseado na mitologia nórdica.Na revista do deus do trovão, Kirby criava as histórias e as desenhava, enquanto cabia a Lee escrever os diálogos. Mas na medida em que os anos 1960 avançavam e Stan “The Man” ia ficando cada vez mais famoso, Jack “The King” começou a ficar reticente em relação ao colega.

Por fim, Lee foi ficando cada vez mais ausente da redação da Marvel (ele também era o editor-chefe), pois ficava viajando pelos EUA dando conferências em universidades e negociando contratos com estúdios de TV e cinema, de fabricantes de brinquedos e outros licenciadores; e a relação entre a dupla ficou mais distante. Enfrentando diversos problemas com a direção empresarial da Marvel – particularmente quanto à devolução das artes originais – Kirby terminou pedindo demissão em 1970.

O artista aceitou uma velha oferta da DC Comics de se mudar para lá e ter autonomia total para tocar seus próprios projetos. Kirby foi. Para esquentar os leitores, o artista assumiu a revista secundária Superman’s Pal Jimmy Olsen, que até então tinha foco no fotógrafo atrapalhado que era o melhor amigo do homem de aço, vivendo aventuras sem noção; mas Kirby trouxe todo um glamour, drama e complexidade à trama, que focava no Superman descobrindo a ação de uma alienígena chamado Darkseid na Terra, ao mesmo tempo em que este se ligava ao uma conspiração que envolvia o (velho herói da DC) Guardião (criado pelo próprio Kirby na década de 1940 e trazido de volta) e o misterioso Projeto Cadmus.

Mas era apenas o aperitivo: em 1971 estreava a revista New Gods, que apresentava seu conceito pleno, mais tarde conhecido como O Quarto Mundo de Kirby: depois que os velhos deuses morreram no Ragnarok, surgiram os Novos Deuses! Era uma analogia à história que Kirby pretendia desenvolver na Marvel: sua última história com Thor foi justamente o Ragnarok, o apocalipse da mitologia nórdica, a morte dos deuses! A nova HQ explicava que das cinzas do tempo antigo surgiu o novo, com dois planetas-gêmeos, Nova Gênese e Apokolips, um guiado pela luz, o outro pelas trevas. O primeiro liderado pelo Pai Celestial; o segundo pelo maligno Darkseid.

Num acordo para garantir a existência da realidade, os dois líderes trocaram seus filhos, para que cada um vivesse no planeta do outro, motivando assim, a guia principal da história. O segundo filho de Darkseid, Órion (irmão de Calibak) é entregue e criado pelo Pai Celestial em Nova Gênese, enquanto um misterioso bebê teria sido entregue pelo Pai Celestial ao vilão, mas a identidade deste permaneceu muito tempo em segredo.

Darkseid, por sua vez, queria encontrar a Fórmula Anti-Vida, uma equação que erradicaria a vida da existência. Órion é o grande herói da trama, destinado a combater Darkseid e seus asseclas, como Desaad e a Vovó Bondade, a líder das Fúrias. Outro herói é o Sr. Milagre, o rei do escapismo, que fugiu de Apokolips e veio à Terra, onde assumiu a identidade de Scott Free e se tornou um herói, depois, se unindo à esposa, Grande Barda, uma dissidente das Fúrias. Os Novos Deuses se desenvolveram como uma grande saga contada em três revistas mensais: New Gods, Mr. Miracle e Forever People; mas a empreitada durou apenas dois anos, com a primeira e a última tendo 11 números cada, e a do meio, 18.



Os conceitos complexos e extremos de Kirby não cativaram o público e toda a empreitada foi cancelada em 1973. Mas felizmente, os personagens permaneceram e foram aproveitados pelo Universo DC tradicional, ao ponto de que Darkseid virou o maior vilão do universo da editora e os coadjuvantes dos Novos Deuses continuaram povoando revistas como a da Liga da Justiça. No futuro, outros artistas visionaram prosseguiram o material de Kirby, adicionando ou desenvolvendo seus conceitos, como John Byrne na empreitada Kirby’s Fourth World, de 1987 (trama na qual finalmente se revelou que o Sr. Milagre era o filho perdido do Pai Celestial – algo deixado apenas subentendido pela obra original), e o radical Grant Morrison em Crise Final, de 2008-2009, com arte de J.G. Jones.

Como o leitor mais sagaz já deve ter percebido, a intenção do Universo DC nos Cinemas era, desde o início, se sorver desse rico mundo, pois Darkseid é insinuado como uma ameaça futura em Batman vs. Superman – A Origem da Justiça; e o vilão de Liga da Justiça, Steppenwolf (Lobo da Estepe), vem de Apokolips e nada mais é do que um lacaio do grande vilão. Mas os produtores perderam a mão e não souberam aproveitar a oportunidade de apresentar Darkseid e toda a sua glória horripilante já no filme da equipe, e entregaram um produto menor.


