Uma grande descoberta, quase arqueológica, foi revelada este fim de semana pela rádio BBC 4: a gravação de um show dos Beatles realizada em março de 1963 em uma escola, imediatamente antes do grupo alçar a fama nacional. É o mais antigo registro de um concerto completo do quarteto de Liverpool em seu país natal já conhecido.
O show ocorreu em 04 de abril de 1963 na cidade de Stowe, em Buckinghamshire, na Inglaterra, na Stowe School For Boy, no auditório de uma escola para meninos. Naquele ponto, os Beatles ainda eram uma banda recém-lançada, com o compacto Love me do (de outubro de 1962) tendo chegado ao 17º lugar das paradas e o single Please please me (janeiro de 1963) tendo chegado ao 1º lugar de algumas paradas. Não havia ocorrido ainda a união oficial das paradas do Reino Unido (que daria origem à UK Official Charts pouco tempo depois) e, por isso, atualmente, é considerado que a faixa teria chegado ao 2º lugar, não ao primeiro – de modo que não aparece listada como um “número 1” no site oficial da UK Official Charts e também não está na coletânea 1, que reúne os primeiros lugares da banda nas paradas do Reino Unido e Estados Unidos.

De qualquer modo, a faixa era um recente sucesso nas paradas e rádios e a banda tinha acabado de lançar seu primeiro álbum, também chamado Please Please Me em 22 de março, duas semanas antes do concerto. Por causa disso, o grupo ainda fazia pequenos concertos em teatros e até atendia eventos particulares por demanda, como foi o caso desse concerto na Stowe School For Boys.
A gravação foi realizada por John Bloomfield, então, com 15 anos, estudante da escola e um dos organizadores do evento. Ele inaugurou o seu novo gravador em fita de rolo naquele dia, posicionando-o no centro do palco e registrando em mono a gravação da íntegra do concerto, que durou pouco menos de 30 minutos, como costumavam durar os shows na época.
A banda inicia o show com I saw her standing there, que também era a faixa de abertura do álbum Please Please Me, e seguiu-se pelo cover de Chuck Berry, Too much monkey business, que a banda jamais registrou em um disco, mas que ficaria registrada em um show na rádio BBC e pode ser ouvida com relativa boa qualidade no álbum Live at the BBC, lançado em 1994. O diferencial do tape é que o público era majoritariamente masculino e, como a banda ainda não era um fenômeno de sucesso, não existia a parede de gritos ensurdecedores que marcariam os futuros concertos dos fab four e tornam as gravações de seus shows muito difíceis de apreciar.

Em Stowe, o público reage com palmas e assobios, mas é possível ouvir a banda tocar. Ao final da segunda faixa, inclusive, o público pede por Please please me, seu sucesso corrente, e a banda responde positivamente, tocando a faixa.
A rádio BBC exibiu não revelou que outras canções foram tocadas, apenas que o concerto se tratava de uma combinação do repertório dos clubes, com covers de R&B e o material de seu álbum de estreia. É esperado (e isso é apenas especulação) que o concerto tenha trazido faixas como a autoral Love me do e covers como Baby it’s you e Twist and shout.
[Atualização: Em 20 de junho, mais de um mês depois desta matéria, o Beatles Daily divulgou o set list completo do show, que se segue. A autoria é de Lennon & McCartney exceto quando indicado.
- I saw her standing there
- Too much monkey business (Chuck Berry)
- Love me do
- Some other guy (Leibner, Stoller, Barrett)
- Misery
- I just don’t understand (Wilkin, Westberry)
- A shot of rhythm and blues (Thompson)
- Boys (Dixon, Farrell)
- Matchbox (Perkins)
- From me to you
- Thank you girl
- Memphis, Tennessee (Chuck Berry)
- A taste of honey (Scott, Marlow)
- Twist and shout (Medley, Berry)
- Anna (go to him) (Alexander)
- Please please me
- Hippy hippy shake (Romero)
- I’m talking about you (Chuck Berry)
- Ask me why
- Till there was you (Wilson)
- Money (that’s what I want) (Gordy, Bradford) [registrado apenas o início]
- I saw her standing there (reprise) [incompleta]
- Sweet little sixteen (Chuck Berry) [não gravada]
- Long tall Sally (Richard, Blackwell, Johnson) [não gravada]
Como se vê há grande predominância no repertório do álbum Please Please Me, alguns números antigos presentes em outras gravações ao vivo em Live at Star Club e Live at BBC e faixas que seriam lançadas depois, como o single From me to you e Money e Till there was you. Como se vê na lista, o show completo não coube na fita da gravação. Fim da Atualização].
A rádio até exibiu alguns trechos das três primeiras faixas do concerto bem como apresentou comentários de experts em Beatles, que tiveram acesso à gravação inteira, como Mark Lewisohn, o maior dos escritores sobre a banda, autor de livros referências, como The Beatles Live (que descreve a carreira de shows da banda), The Complete Beatles Recording Sessions (com a descrição de todas as gravações da banda), The Complete Beatles Chronicles (com a descrição dia a dia da carreira da banda) e atualmente publica um ambicioso projeto de uma série de livros sobre o grupo compondo a mais completa biografia dos Beatles, distribuídas em volumes – já chegaram às lojas os volumes 1 e 2 (de 4 planejados) de The Beatles Tune In: Todos esses anos.

Os comentários são entusiásticos pela riqueza histórica da gravação, com o mais antigo concerto em solo britânico registrado na íntegra. Existe um registro filmado da banda tocando duas faixas (Some other guy e Kansas City) no The Cavern Club em 22 de agosto de 1962, mas não o show completo. E existe a gravação de mais de um concerto no Star Club em Hamburgo na Alemanha, gravados em dezembro de 1962 e lançados como um álbum pirata The Beatles Live! At Star Club, Germany, 1962, em 1977 e sem autorização da banda. (O grupo conseguiu retirar o disco das lojas após um longo processo judicial, mas países com leis dúbias sobre pirataria o continuaram produzindo e exportando ao longo das décadas, como a Itália e o Brasil, na qual o disco pode ser encontrado “legalmente” pela gravadora Coqueiro Verde).

Vale à nota que o Live! At Star Club também foi gravado em um gravador de rolo direto da plateia e tem uma má qualidade de som, com sonoridade abafada e pouco nítida e os vocais muito baixos, superados pelos volumes graves dos instrumentos e com deficiência de tons médios e agudos.
Os trechos do show de Stowe – realizado apenas quatro meses depois daqueles de Hamburgo – exibidos pela BBC possuem qualidade similar: muito graves (o gravador estava próximo demais dos autofalantes) e com vocais baixos. Não é impossível que pudessem ser recuperados com a alta tecnologia, mas não se sabe qual será o destino da gravação, ainda que Lewisohn e outros convidados do programa ensejam que algo oficial seja feito com eles.
Ou seja, todos esperam que a Apple Records, a gravadora dos Beatles, compre o tape (por um valor milionário, claro) e restaure sua qualidade para um lançamento oficial. Não é impossível.

A gritaria frenética nos shows dos Beatles na fase da Beatlemania (1963-1966) e os limitados recursos tecnológicos da época tornam as gravações ao vivo dos Beatles um artigo raro, infelizmente, pelo menos no sentido de faixas com qualidade de áudio. O álbum Live At the BBC (1994) reúne mais de 30 faixas ao vivo registradas entre 1963 e 1965 (enquanto o Volume 2, lançado em 2013, acrescenta alguns números de 1962), mas embora “ao vivo”, foram tocadas nos estúdios da rádio, quase sempre sem a presença de público. E mesmo assim, a qualidade de áudio dos tapes é variável, alguns bons, outros nem tanto.
A série de CDs The Beatles Anthology traz mais de uma dezena de registros ao vivo dos Beatles entre 1963 e 1966 (incluindo duas faixas do último concerto oficial da banda, no Candlestic Park em San Francisco), nos seus volumes 1 (1995) e 2 (1996), também de qualidade variável e somente com trechos de concertos.

O único registro oficial dos Beatles ao vivo como obra completa é o Live At the Hollywood Bowl, que reúne o material de três shows realizados em 1964 e 1965 em Los Angeles, gravado com equipamento profissional pelo produtor George Martin. Contudo, a gritaria das fãs é tão grande que o material também não tem uma qualidade excepcional. O disco foi lançado em 1977 e sua qualidade motivou que saísse de catálogo pouco tempo depois. Mas o disco voltou às lojas com um extenso trabalho de remasterização e recuperação digital de áudio usando as tecnologias mais modernas em 2016, servindo como trilha sonora do documentário Eight Days a Week, de Ron Howard, sobre a carreira de concertos da banda. Realmente a qualidade do registro ficou muito boa, ainda que não excelente. (Mas a capa é horrenda!).
A grande esperança no fim do túnel é que para a feitura do documentário The Beatles – Get Back, em 2021, a equipe comandada pelo diretor Peter Jackson desenvolveu uma tecnologia de separação de sons que permite melhorar individualmente os instrumentos musicais mesmo quando estão misturados no mesmo canal. Um grande teste com essa tecnologia foi realizado para a nova mixagem do álbum Revolver (1966), lançada no início deste ano e que foi gravado apenas em 4 canais. O resultado incrementou a qualidade de áudio dos instrumentos individualmente.

É um início promissor para uma tecnologia que pode permitir, em alguns anos no futuro, melhorar radicalmente os registros ao vivo dos Beatles e isolar e diminuir de volume a gritaria do público nas gravações dos concertos.
Essa esperança acende o desejo de ver esse material ver a luz do dia no futuro, com a Apple lançando uma série de shows da banda em roupagem totalmente nova. O próprio Hollywood Bowl, o concerto de Stowe e quem sabe até o Star Club (afinal, a banda se tornou proprietária dos tapes após um processo judicial encerrado em 1998 e até hoje não incluiu o material em nenhum lançamento). Quem sabe, não é?
Os Beatles surgiram em Liverpool, na Inglaterra, em 1956 como uma banda de colégio de John Lennon, que persistiu as atividades e adicionou Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr nos anos seguintes. O grupo lançou seu primeiro single em 1962 e chegou ao sucesso nacional e europeu em 1963, conquistando o mundo em 1964. Liderados pelas canções de Lennon & McCartney, o grupo revolucionou o rock e a cultura pop com sua estética e a qualidade de seu material, desenvolvendo novas técnicas de gravação em estúdio e abrindo espaço para movimentos de vanguarda artística, lançando álbuns icônicos como Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band (1967), The White Album (1968) e Abbey Road (1969). Encerraram as atividades em 1970 e jamais se reuniram, com seus quatro membros desenvolvendo carreiras solo de sucesso nas décadas seguintes.
John Lennon foi assassinado por um fã com distúrbios mentais em 1980 e George Harrison morreu de câncer em 2001, mas Paul McCartney e Ringo Starr prosseguem ativos no cenário musical internacional.

