A notícia não chega com surpresa, mas não é menos triste, mesmo assim… Morreu ontem a cantora e compositora Rita Lee, um dos maiores ícones da música brasileira, considerada a rainha do rock do Brasil e lembrada como parte da lendária banda Os Mutantes, uma das poucas do nosso país que goza de reconhecimento internacional. A musicista já havia se aposentado dos palcos e das gravações há alguns anos e foi diagnosticada com um câncer de pulmão em 2021, e conseguiu uma remissão em 2022, mas chegou a voltar a ser internada este ano. Rita faleceu na noite de ontem, dia 08 de maio.

Ao longo da carreira, Rita passou por várias fases distintas, com os Mutantes, com o Tuti-Frutti, em parceria com o marido Roberto de Carvalho… e com isso forjou uma carreira ímpar, cheia de sucessos em todas as fases e mantendo sua popularidade até o fim. Seu último álbum, Reza, de 2012, foi um sucesso estrondoso com a faixa-título, por exemplo.

Além disso, Rita foi importante enquanto figura histórica. Desde o início foi uma defensora da liberdade e um exemplo de mulher que luta contra a opressão machista e firma um papel igualitários aos homens. Desde seu casamento “forjado” com Arnaldo Baptista dos Mutantes (ela dizia que escolheu entre ele e seu irmão, Sérgio Dias, num par ou ímpar; se apresentava vestindo o vestido de noiva; e ainda rasgou a Certidão de Casamento ao vivo na TV no Programa de Hebe Camargo) passando por sua prisão por porte de drogas em 1976 (na qual estava grávida e foi visitada na prisão por Elis Regina, com estardalhaço), Rita sempre esteve à frente de seu tempo e não tinha papas na língua, o que rendeu, claro, alguns dessabores. E foi assim até o fim: o último show de sua última turnê, no Festival do Verão, em Aracaju, Sergipe, em 28 de janeiro de 2012, ela discutiu com um policial e foi presa por desacato! Rita sendo Rita.

Essa garota ruiva, de sarnas, sempre sorridente, fazendo piada de tudo, sobretudo, de si mesma, mas ao mesmo tempo, extremamente crítica e debochada, nasceu em São Paulo, em 31 de dezembro de 1947, filha do dentista norteamericano Charles Lee, e da mãe italiana Romilda Padula, criada em uma família de classe média alta na Vila Mariana. Sua mãe era pianista e a incentivou na música e no canto ao lado das irmãs.

Nem tudo era felicidade, claro. O pai era muito rigoroso com as filhas e o Brasil ainda era o Brasil: em sua autobiografia, ela narra que foi estrupada aos seis anos de idade por um técnico que foi consertar uma máquina em sua casa.

A música foi o seu principal refugio contra esse e outros males. Após contrair uma dívida com o pai dela por causa de um tratamento dentário, a célebre pianista Magdalena Tagliaferro se ofereceu para dar umas aulas de piano à menina, que se saiu bem, mas era extremamente nervosa para se apresentar em público: em uma audição, a menina fez xixi no banquinho do piano de tão nervosa. Por causa disso, a professa recomendou que não seguisse na música.

Mas ela seguiu. Com os amigos de colégio foi aprendendo os rudimentos de instrumentos como violão e flauta e quando montou sua primeira banda, aos 16 anos, The Teenager Singers, um trio de meninas nas quais todas cantavam e tocavam seus instrumentos, Rita foi a baterista do grupo. Primeiramente, ela tocava no grupo escondida do pai, até quebrar o pé numa escapada pela janela do seu quarto no segundo andar, dali em diante, ganhando a autorização vigiada de continuar se apresentando.

Naqueles tempos de Ditadura Militar, os jovens extravasavam a tensão e perseguição cultural e política por meio da efervescência artística. A classe média paulistana encontrou escape por meio de colégios como Marista, Cristo Rei, Bandeirantes, Liceu Pasteur, que promoviam um rico circuito de gincanas, semanas culturais, festivais, nos quais os alunos se apresentavam, o público podia assistir e até, de vez em quando, algum artista de renome fazia alguma apresentação. As Teenager Singers, por exemplo, chegaram a serem convidadas a gravar backing vocals para o artista Tony Campello, um astro da década anterior.

Em 1964, quando Rita tinha 17 anos de idade, as Teenage Singers se apresentaram no Teatro João Caetano e conheceram um grupo de meninos, The Wooden Faces, que contavam com o talento de Arnaldo Baptista no baixo. Saídas para comemorar, uma bebedinha aqui e ali, sexo escondido e algumas apresentações pela cidade criaram uma grande afinidade entre as duas bandas, de modo que Rita e Arnaldo meio que passaram a namorar – dentro de uma lógica meio hippie, de relacionamento aberto – e as bandas se fundiram em uma só, nascendo o sexteto The Six Sided Rockers, que terminou abrasileirado para O’Seis, que gerou até um contrato com a gravadora Continental, que lançou um compacto simples com as faixas Suicida (de Raphael Villardi e Roberto Loyola) e Apocalipse (de Raphael e Rita Lee).

O disquinho não foi a lugar nenhum e a banda meio que se dissolveu, restando o trio Rita Lee (vocais, flauta, percussão) e os irmãos Arnaldo Baptista (baixo, teclados, vocais) e Sérgio Dias (guitarra, vocais), que se batizou inicialmente de Os Bruxos e, em 1966, terminaram convidados pelo astro da Jovem Guarda, Ronnie Von, a se tornarem a banda fixa de seu programa, O Pequeno Mundo de Ronnie Von. Foi o cantor quem sugeriu o novo nome da banda: Os Mutantes.

Estar na TV chamou a atenção para os Mutantes, que terminaram se tornando a banda de acompanhamento de Gilberto Gil em Domingo no parque no Festival Internacional da Canção da Rede Record, em outubro de 1967, causando impacto com seu visual, atitude e sonoridade; tanto que o trio voltou ao festival no ano seguinte, agora acompanhando Caetano Veloso em É proibido proibir, hino da contracultura brasileira (ocasião em que Rita usou pela primeira vez o vestido de noiva – que era da atriz Leila Diniz, um figurino de uma novela).

Estava em gestação o Tropicalismo, uma estética de vanguarda, pautada no psicodelismo do rock inglês e americano; na influência de Beatles, Rolling Stones, Janis Joplin e Jimi Hendrix; na combinação de elementos da música popular (brega, sertanejo, samba) com guitarra elétrica, efeitos sonoros, antropofagismo modernista e muito mais, reunindo artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Nana Caymi, os Mutantes, Tom Zé… coletivo que lançou o disco manifesto Tropicália ou Panis et circensis, em 1968, com arranjos do maestro Rogério Duprat.

Na esteira, os Mutantes lançaram seu primeiro álbum, Os Mutantes, um dos maiores clássicos da música brasileira, extrapolando a estética tropicalista, num repertório que combinava canções autorais do trio com outras de Gil e Caetano. Apesar de sua radicalidade sonora e comportamental – incluindo o casamento aberto de Rita e Arnaldo – os Mutantes prosseguiram sendo uma banda de sucesso, inclusive, alçando já naquela época voos internacionais, tocando na França e sendo convidados para gravar um álbum em inglês para o mercado internacional – iniciativa que não vingou por causa dos problemas com drogas.

Rita gravou cinco álbuns com os Mutantes (Os Mutantes, 1968; Mutantes, 1969; A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado, 1970; Jardim Elétrico, 1971; Mutantes e Seus Cometas no País dos Bauretz, 1972), mais um sexto lançado postumamente (Tecnicolor, o tal disco em inglês, de 1970), e como principal estrela (e compositora) da banda, chegou a gravar dois álbuns solo, Build Up (1970) e Hoje é o Primeiro Dia do Resto de sua Vida (1972).

Expulsa dos Mutantes – que queriam investir no rock progressivo, o que exigia mais habilidades instrumentais do que Rita podia ofertar – e findo o “casamento” com Arnaldo Baptista, Rita Lee foi incentivada por André Midani, presidente da gravadora Phillips, e após algumas outras experimentações de formato, formou a banda Tutti-Frutti, com o qual alçou sua carreira solo de verdade e alçou sucessos seguidos com Agora só falta você, Esse tal de roquenrol, Ovelha negra, Luz del fuego.

Depois, ela firmou parceria com o multiinstrumentista Roberto de Carvalho, que trouxe mais refinamento composicional às canções da cantora, e resultou em uma sonoridade menos rock, mais combinada à MPB, com certo adoçamento, como Doce vampiro, Mania de você, Chega mais, Lança perfume, Baila comigo e uma lista sem fim.

Ela viveu uma má fase no início dos anos 1990, o que resultou numa separação de quatro anos de Roberto de Carvalho a partir de 1991, mas a reconciliação terminou por trazer uma melhora, com ela abrindo os shows dos Rolling Stones no Brasil em 1995. Mas no ano seguinte, ela sofreu um grave acidente em casa, caindo da varando sob o efeito de drogas, o que resultou numa luta para se limpar dos narcóticos, que só terminaria dez anos depois.

A década de 2000 trouxe Rita de volta ao sucesso e a emplacar sucessos nas rádios, como a canção Amor & sexo, de 2003, culminando com o álbum Reza, de 2012, que terminou por ser o seu último álbum. A turnê que findou na prisão no já citado Festival de Verão em Aracaju, também em 2012, foi a sua última. Ela anunciou uma aposentadoria das turnês, mas que prosseguiria na música.

Todavia, ela não gravou mais discos depois disso, e fez somente outros dois shows: tocou em Brasília em 2012 (onde mostrou a bunda ao público) e no aniversário de São Paulo em 2013, onde foi aclamada pelo público de sua cidade natal. E encerrou a carreira, embora tenha lançado o single Changes, em setembro de 2022.

Na última década, Rita se dedicou essencialmente à literatura, lançando vários livros, como o infantil Amiga Ursa: Uma história triste, mas com final feliz, FavoRita, Dropz, Storynhas e Rita Lírica, e sua Autobiografia, em 2016. Está em pré-venda Outra Autobiografia para lançamento agora em 2023.

Rita vivia isolada em um sítio, afastada do mundo, mas manteve alguma atuação nas redes sociais, e o diagnóstico de câncer em 2021 colocou a compositora em evidência novamente. Foi anunciada a cura em abril de 2022, mas a doença retornou, dessa vez, fatal.

Se vai uma artista de grande peso e importância, uma influência não apenas musical, mas comportamental.

Rita Lee tinha 75 anos e deixa três filhos, Roberto, João e Antônio.  

O velório será público: amanhã, quarta-feira, dia 10, no Planetário do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, de 10h às 17h.