Morreu nesta madrugada o lendário desenhista John Romita, um dos maiores artistas das histórias em quadrinho, criador visual de personagens como Wolverine, Justiceiro, Miss Marvel e muitos outros, além do mais clássico dos artistas do Homem-Aranha, onde criou vários vilões e personagens coadjuvantes, inclusive, Mary Jane Watson. A notícia foi dada no Twitter pelo próprio filho do artista, o desenhista John Romita Jr., que seguiu seus passos e é um dos mais destacados quadrinistas da realidade.
A triste nota diz:
Digo isso com o coração pesado… meu pai faleceu em paz durante o seu sono. Ele é uma lenda no mundo das artes e seria uma honra seguir os seus passos. Por favor, coloquem seus pensamentos e condolências aqui em respeito à nossa família. Ele era o melhor homem que eu já conheci.
O HQRock já tinha publicado uma biografia do grande John Romita anos atrás (veja aqui).

Nascido em 24 de janeiro de 1930, no Brooklyn, em Nova York, em uma família de imigrantes italianos, era filho de um padeiro e uma dona de casa. Despertado para as artes desde cedo por causa das tiras de quadrinhos nos jornais, Romita estudou desenho industrial na prestigiada escola técnica School of Industrial Arts, em Manhattan, e começou a carreira na publicidade. Trabalhando com artes gráficas aos 19 anos de idade teve a primeira oportunidade de trabalhar com a sua maior paixão, os quadrinhos, quando foi convidado pelo artista Lester Zakarin para trabalhar para ele como “artista fantasma” (sem ganhar créditos) em uma série de histórias. O jovem Romita aceitou com entusiasmo ao notar que bastavam duas páginas de desenho para bater seu salário semanal na publicidade.

A editora era a Timely Comics, o nome antigo da Marvel Comics, e isso lhe possibilitou a gradativamente se tornar conhecido na redação e receber trabalhos por conta própria das mãos do editor-chefe Stan Lee, que era apenas oito anos mais velho do que ele, mas já um veterano na indústria. Em 1951, Romita foi convocado pelo Exército, mas se livrou de ir à Guerra da Coreia por causa de seus dotes artísticos, o que lhe possibilitou desenhar cartazes e gráficos para o esforço militar, o que interrompeu sua carreira nas HQs brevemente.

Mas depois de um ano, já conseguia voltar a desenhar nas horas vagas e retornou o trabalho na Atlas (o segundo nome da Marvel) fazendo ficção científica e faroestes até ser o artista escolhido por Lee para ilustrar o retorno do Capitão América às publicações após uma ausência de quatro anos do personagem. As histórias do sentinela da liberdade – na maioria escritas por Don Rico – foram publicadas entre 1953 e 54 nas revistas Young Man, Man’s Adventures e Captain America, mas não foram bem-sucedidas, em um mercado que estava em retração. Mas de qualquer modo, aquela foi a primeira incursão de Romita nos super-heróis.

Ele voltou a fazer faroestes e ficção científica, mas em 1957, a crise do mercado editorial era tão grande que a Atlas foi obrigada a demitir todo o seu staff, passando a trabalhar com free lancers a um preço menor. Por causa disso, Romita terminou na concorrente DC Comics, onde passou a ilustrar revistas de romance voltadas para o público adolescente que faziam muito sucesso então. Durante oito anos ele foi o principal artista da casa nesse gênero, mas incrivelmente, jamais foi usado na linha de super-heróis da casa, o que lhe frustrou um pouco.
Só que nos anos 1960, os super-heróis que tinham entrado em decadência vinte anos antes voltaram a fazer sucesso com força total, por causa da renovação dos personagens da DC (com novas versões de Flash e Lanterna Verde fazendo coro aos consolidados Superman, Batman e Mulher-Maravilha) e o surgimento da nova linha de heróis da Marvel Comics (agora, sim, usando esse nome), com Quarteto Fantástico, Hulk, Thor, Homem-Aranha, Homem de Ferro, Doutor Estranho, Vingadores e outros, criados por Stan Lee, Jack Kirby, Don Heck, Larry Lieber, Steve Ditko etc. Com a mudança do mercado, em 1965, os romances começaram a deixar de vender e a DC deixou de comprar novas artes, preferindo publicar o que já tinha em arquivo ou investir em republicações, o que deixou Romita sem trabalho.


Ele decidiu, então, largar as HQs e voltou a trabalhar com publicidade, agora, como um artista veterano, ganhando um salário bastante alto. Mas a notícia de seu afastamento chegou aos ouvidos de Stan Lee, ainda o editor-chefe da Marvel, que o convidou de volta para os super-heróis cobrindo o seu salário, o que Romita aceitou. Porém, ele queria trabalhar apenas com o nanquim, cobrindo a arte de outros desenhistas – o que fez por um tempo, como artes de Jack Kirby para Vingadores e Capitão América – mas no fim das contas, Lee o persuadiu a voltar a desenhar, com Romita desenhando com seu próprio traço um par de histórias do Capitão América antes de se tornar o artista fixo do Demolidor.
A revista Daredevil não era um dos maiores sucessos da Marvel e foi uma estratégia de caso pensado de Lee para que Romita “pegasse o jeito da coisa” dentro do estilo da casa antes de alçar voos maiores. E não precisou de muito tempo: no início de 1966, após uma “guerra fria” de alguns anos, o desenhista e roteirista do Homem-Aranha, Steve Ditko, decidiu deixar a Marvel, e coube a John Romita a tarefa de assumir um dos personagens mais populares da editora.

Embora ainda mantivesse algum reflexo de referência à arte distintamente diferente de Ditko, o traço elegante, redondo, bonito e plástico de Romita encantou os leitores, embelezando o mundo de Peter Parker a partir de Amazing Spider-Man 39, no verão de 1966, na bombástica história em que o Duende Verde descobre a identidade secreta do Homem-Aranha e revela a sua própria como sendo Norman Osborn após um mistério de dois anos. Logo em seguida, na edição 42, Romita introduziu aquela que seria o maior par romântico do herói: Mary Jane Watson, uma personagem que já vinha rondando as histórias, mas nunca tinha sido mostrada efetivamente. Romita desenhou a ruiva como se ela fosse a mulher mais bonita do mundo.


Na prática, Romita passou a ser o roteirista de Amazing Spider-Man, também, porque o estilo de Stan Lee era o de passar uma sinopse breve para o artista e ele desenvolver a trama e o ritmo a partir dos desenhos, com Lee retornando para criar os diálogos e os recordatórios. Após algum tempo, Romita pegou o jeito da coisa e não precisava mais de uma sinopse, desenvolvendo ele mesmo a trama e apenas conversando com Lee (que também era seu editor) sobre o que fariam naquele mês. A empreitada foi um sucesso, pois em apenas um ano com a arte dele, a revista do Homem-Aranha se tornou o maior sucesso de vendas da Marvel.



Romita usou sua experiência nas histórias de romance para esquentar a vida afetiva de Peter Parker, embelezando todos os personagens e o colocando em meio a um tipo de disputa entre Gwen Stacy e Mary Jane, enquanto seus amigos Flash Thompson e Harry Osborn também lutavam pela afeição das garotas, numa trama algo adolescente, mas que terminou por fornecer aprofundamento emocional a todos eles. O artista também criou uma série de novos vilões a já extensa e bem-sucedida galeria de vilões do Aranha, com inimigos como Rino, Shocker e o Rei do Crime.


Lee e Romita também criaram uma das mais emblemáticas histórias do aracnídeo em Homem-Aranha nunca mais, quando Peter Parker tenta deixar de ser o herói – largando seu uniforme em uma lata de lixo – apenas para ser forçado a retomar seu trabalho quando a cidade de Nova York vira de cabeça para baixo com uma grande onda de crimes encabeçada por Wilson Fisk, o Rei do Crime em Amazing Spider-Man 50, de 1967.




A arte de Romita era tão bonita e eficaz que Stan Lee começou a usar o artista para corrigir as artes de outros desenhistas nas outras revistas da Marvel e ele passou a constantemente a retocar a arte em histórias dos Vingadores, Demolidor, Capitão América e vários outros. Como era um artista lento, essa prática o obrigou a trabalhar com colaboradores no Homem-Aranha, passando a dividir os créditos com Jim Mooney, Larry Lieber e John Buscema. De vez em quando, Lee também pedia para Romita criar o visual de um personagem novo, como ele fez com o Capitão Marvel em 1968, cujas histórias eram ilustradas por Gene Colan.



Em 1970, Lee decidiu trazer o artista Gil Kane para ser o desenhista oficial do aracnídeo, mas ainda cabia a Romita retocar aquela arte, especialmente, refazendo o rosto dos personagens. De qualquer modo, a combinação dos ângulos inusitados de Kane com o belo traço de Romita tornaram Amazing Spider-Man um desbunde visual maior ainda. Infelizmente, a fase durou pouco (apenas alguns meses) porque Romita precisou desenhar o Quarteto Fantástico após a saída repentina de Jack Kirby da editora.



Com o Aranha em boas mãos, Romita deu uma mãozinha ao Capitão América, desenhando o herói ao longo do ano de 1971-1972 para aumentar suas vendas (o que funcionou belamente) antes de entregar a revista para o artista Sal Buscema e retornar à arte principal do Homem-Aranha fazendo de novo a dobradinha com Stan Lee.

Foi aí que Romita desenhou aquela que é a sua história favorita entre todas: Amazing Spider-Man 108 e 109, de 1972, na qual Flash Thompson retorna traumatizado da Guerra do Vietnã e é perseguido por uma seita vingativa, precisando da ajuda do Homem-Aranha e contando ainda com a participação do Doutor Estranho. A combinação de misticismo, guerra e drama romântico (entre o garoto e a vietnamita Sha Shan) eram os elementos que conferiam o exotismo e a ambiência para uma aventura no estilo daquelas de sua infância.



A volta de Romita ao aracnídeo veio também para ajudar o novo roteirista Gerry Conway (com apenas 19 anos) a escrever as novas aventuras de Peter Parker. Essa curta fase, ao longo do ano de 1972, mostrou uma arte bastante madura de Romita em histórias menos badaladas do que aquelas do passado, mas muito interessantes, com a guerra de gangues entre o Doutor Octopus e o Cabeça de Martelo (Amazing Spider-Man 112 a 115), a eleição municipal de Nova York atrapalhada pelo ataque de um vilão (edições 116 a 118) e um confronto com o Hulk (edições 119 e 120).

Depois que Conway estava suficientemente seguro, Romita e Kane voltaram a fazer sua dobradinha mágica e foi nessa formação que criaram a lendária história A noite em que Gwen Stacy morreu, em Amazing Spider-Man 121, de 1973, que como o título diz, trouxe a dramática morte da namorada de Peter Parker nas mãos do Duende Verde.



Na história, como antes, Kane investiu em seus ângulos dinâmicos, enquanto Romita embelezava os rostos dos personagens e deixava os traços mais incisivos. Mas é sabido que Romita várias vezes apagava um ou dois quadros a lápis de Kane para refazê-los totalmente, como foi o caso da morte do Duende Verde.


Porém, pouco depois daquilo, infelizmente, Romita deixou de ser um artista regular porque Stan Lee foi promovido e se tornou o publisher e vice-presidente da Marvel, se afastando do dia a dia da redação, com Roy Thomas sendo o novo editor-chefe. Mais ausente da redação, Lee achava que precisava ter um olho confiável para manter o visual deslumbrante da editora, então, nomeou Romita como Diretor de Arte da Marvel. A partir de então, a principal atividade dele passou a treinar novos artistas, retocar suas artes, fazer as capas das revistas e criar novos personagens que mantivessem o estilo da casa.




Foi nessa condição que Romita se tornou o criador visual de inúmeros personagens da Marvel a partir dos anos 1970, como Luke Cage (1972), Justiceiro (1973), Wolverine (1974), Miss Marvel (1977 – hoje ela é conhecida como Capitã Marvel), Nova (1979) e muitos e muitos outros, além de remodelar alguns pré-existentes – por exemplo, foi Romita quem criou o novo visual da Viúva Negra com seu uniforme preto e colante, braceletes e cinto, com cabelos longos e ruivos e sem máscara que se tornou o visual padrão da personagem até hoje, inclusive, no cinema (Antes, ela usava uma roupa com rendas, meia-capa, máscara e cabelos curtos); e também redesenhou o uniforme do Falcão da versão verde e creme original para aquele visual bonito em branco e vermelho que todos conhecem hoje (e fez um upgrade mais tarde adicionando as asas que são indissociáveis do personagem atualmente).



Ele ainda voltou a desenhar histórias ocasionalmente, principalmente, em momentos especiais, mas também ilustrou por dois anos as tiras de jornal do Homem-Aranha, que eram escritas com Stan Lee, entre 1977 e 1979.


Romita continuou trabalhando na redação da Marvel até se aposentar, em 1996.
E também deixou outro legado em seu filho, John Romita Jr., que se tornou um dos principais desenhistas da Marvel, começando no Homem de Ferro e fazendo trabalhos memoráveis no Homem-Aranha, X-Men, Demolidor, Vingadores e muitos outros.
Segundo o comunicado de seu filho, Romita faleceu enquanto dormia, aos 93 anos. Uma morte pacífica para um sujeito que sempre foi discreto e não usou dos holofotes da carreira.


