Apesar de ser uma das líderes da produção mundial de entretenimento, a The Walt Disney Company vive uma crise financeira, assim como boa parte de suas concorrentes (em especial a Warner Bros. Discovery). Para solucionar a crise, a Casa do Rato até trouxe de volta da aposentadoria o CEO Bob Iger, responsável pelo apogeu financeiro da companhia entre as décadas de 2000 e 2010. Iger instituiu uma agressiva política de corte de custos e a nova vítima célebre da ação é ninguém menos do que o CEO da Marvel Entertainment, Isaac “Ike” Perlmutter, o poderoso executivo que já foi o dono da Casa das Ideias. As informações são do The New York Times.

Segundo o jornal, na quarta-feira, a Disney tomou a decisão de demitir Perlmutter, sob a alegação de que a Marvel Entertainment se transformou em uma divisão redundante dentro do conglomerado da Disney. No papel, a ME desenvolve produtos ao consumidor de modo separado do Marvel Studios, que é hoje a faceta mais conhecida da Casa das Ideias.

Mas as coisas não são bem assim por trás dos panos…

Em primeiro lugar, é bom relembrar que Ike Perlmutter simplesmente era o dono da Marvel até algum tempo atrás. É um sujeito misterioso: para se ter uma ideia até pouco anos atrás só se conhecia uma única fotografia dele (datada dos anos 1980!!!!), que não aparece em público e nunca deu uma entrevista. Isso só mudou quando participou de alguns eventos em apoio ao ex-presidente Donald Trump e foi fotografado.

Ike Perlmutter em 1985.

Perlmutter nasceu em 1942 no Território Britânico da Palestina, que se transformou no Estado de Israel em 1948, lutou na Guerra dos Seis Dias, em 1967, e emigrou para os Estados Unidos em algum momento da década de 1970, onde ganhou dinheiro com serviços funerários antes de começar a vender brinquedos e começar a fazer fortuna. Ao longo dos anos 1980 ele foi “notado” pelo mercado através de uma série de aquisições agressivas de empresas de comércio e farmácias, e em 1990 fundou a ToyBiz, uma empresa de brinquedos, ao lado do também executivo israelense Avi Arad. Rapidamente a ToyBiz se transformou na principal empresa na venda de bonecos e assessórios de franquias de super-heróis, Star Wars e cultura nerd.

Quando, no início dos anos 1990, o mercado das HQs vivenciou seu maior boom desde os tempos da II Guerra Mundial, com a venda de exemplares saltando às centenas de milhares de unidades e as recordistas ultrapassando a marca do milhão de unidades, e a Marvel emplacava uma série de desenhos animados de enorme sucesso na TV, com X-Men e Homem-Aranha à frente, Perlmutter e Arad decidiram investir na indústria de fonte e, em 1993, compraram um lote vistoso de ações da Marvel Entertainment, o grupo empresarial que comandava a editora Marvel Comics, e cuja propriedade majoritária de Ronald Perelman.

Avi Arad, o primeiro presidente do Marvel Studios.

Contudo, a bolha do mercado de HQs estourou e as vendas despencaram, com o mercado enfrentando a maior crise de sua história, o que levou à Marvel a entrar em pedido de falência em 1996. Nesse momento, Perlmutter fez sua jogada empresarial e convenceu as instituições financeiras americanas a abrir um processo de concordata (ou seja, recuperação judicial) e, com isso, se tornou o sócio majoritário da Marvel Entertainment. Uma das jogadas de Perlmutter foi criar o Marvel Studios (sob a presidência de Arad) para comissionar adaptações cinematográficas de seus personagens, vendendo os direitos de adaptação a vários estúdios (como Columbia, Paramount, Universal, 20th Century Fox etc.) por preços baixos, o que serviu para recapitalizar a empresa, e torná-la uma companhia saudável de novo.

O plano deu certo e os anos 2000 viram a Marvel emplacar várias franquias de sucesso no cinema, com X-Men e Homem-Aranha à frente.

O jovem Kevin Feige, presidente do Marvel Studios.

As coisas começaram a mudar quando Avi Arad se impressionou com o produtor associado encarregado dos filmes dos X-Men que trabalhava para a produtora Lauren Shullen-Donner: o jovem Kevin Feige. Em 2002, Feige foi contratado como vice-presidente do Marvel Studios e começou a vender a ideia de que a empresa não apenas comissionasse seus filmes, mas passasse a produzi-los e usasse as parcerias com os estúdios para que estes os distribuíssem, o que tornava o processo mais barato para a Marvel e lhe dava mais controle criativo. Perlmutter gostou da ideia, mas Arad não. No fim das contas, Perlmutter impôs sua decisão e Arad foi demitido do cargo de presidente do Marvel Studios, que foi assumido por Kevin Feige em 2007, já durante a produção de Homem de Ferro e O Incrível Hulk, filmes que lançaram o MCU. Arad permaneceu à frente apenas dos filmes do Homem-Aranha na Sony/Columbia.

A ação de Perlmutter-Feige não foi apenas bem-sucedida, mas revolucionou a indústria cinematográfica, criando o modelo de franquias atual, com os universos compartilhados se desenvolvendo em vários produtos diferentes, ao contrário das linhas únicas do passado. Deu tão certo que Perlmutter negociou a venda da Marvel Entertainment para a Disney, fechando o negócio com Bob Iger em 2009 por 4 bilhões de dólares.

Bob Iger em 2016.

A Disney de Iger renegociou o contrato com os estúdios e reaviu os direitos cinematográfico do core principal do MCU – os Vingadores – e gradativamente foi dando mais poder a Feige, que tecnicamente era subordinado a Perlmutter, afinal, o Marvel Studios era uma divisão da Marvel Entertainment. Mas embora não fosse mais o dono da Marvel, Pedrlmutter ainda era o segundo maior sócio e manteve o cargo de CEO da Marvel Entertainment como parte do acordo.

Perlmutter é uma figura polêmica e Sean Howe no seu livro sobre a Marvel afirma que o executivo é um “mão de vaca” histórico, não apenas notório por pagar abaixo do mercado mesmo quem se destaca, mas daqueles que catavam clipes de papel no lixo para economizar (não é exagero, garante o autor!), e o The New York Times afirma na presente matéria que era dado a comentários sexistas, homofóbicos e racistas e que foi por sua causa que filmes como Pantera Negra, Viúva Negra e Capitã Marvel demoraram a sair.

Também é bastante conhecida a história de que, em 2008, Perlmutter criou um Comitê Criativo – encabeçado pelo então editor-chefe da Marvel Comics, Joe Quesada, e o escritor-sensação Brian Michael Bendis – para supervisionar e “auxiliar” o trabalho de Feige na criação do MCU e isso resultou em uma épica disputa de poder. Mas a imprensa costuma creditar a interferência do tal comitê aos fracassos de filmes como Thor – O Mundo Sombrio e Homem de Ferro 3, que a despeito de bilheterias altas, são obras “menores” do Marvel Studios.

Perlmutter (dir.) aperta a mão de Trump (esq.) em ato de 2019.

Como resultado disso, em 2015, Perlmutter tentou demitir Feige da presidência do Marvel Studios e, em reação, seu chefe, Bob Iger promoveu uma mudança no organograma da Disney e colocou o Marvel Studios ligado diretamente à cabeça da Disney, sem precisar da aprovação criativa da Marvel Entertainment, que ficou ocupada apenas dos demais produtos da Casa das Ideias, como HQs, desenhos animados e TV. Como isso ainda não era o suficiente, em 2019, Iger tornou Feige o Diretor Criativo da Marvel Entertainment, o que na prática colocou Feige como o manda-chuva criativo para todos os produtos da casa, dos quadrinhos ao cinema, ainda que tenham mantido as diretorias subsidiárias existindo sob seu comando.

Kevin Feige em 2023.

Em longo prazo, pode-se notar uma estratégia executiva da Disney de gradualmente diminuir o poder de influência de Perlmutter, que mesmo não tendo mais o poder “criativo” nos últimos anos, ainda era o presidente da Marvel, um cargo de poder investido, inclusive, do controle financeiro.

Sua saída da Marvel após 30 anos deverá ter um impacto enorme no aspecto administrativo e financeiro da companhia e pode mudar mesmo a cara da gestão.

Victoria Alonso.

Ainda é importante frisar, a saída de Ike Perlmutter não é a única de grande porte que está ocorrendo nesses dias. Com estardalhaço, semana passada foi demitida a produtora executiva Victoria Alonso, também a chefe de efeitos especiais do Marvel Studios, após a alegação de quebra de contrato pelo fato dela estar envolvida na produção de filmes fora da companhia (no caso, o filme argentino indicado ao Oscar, Argentina 1985). Alonso negou as acusações – segundo ela, os filmes foram produzidos mediante conhecimento e autorização da Disney – e afirmou categoricamente que sua demissão se deu porque criticou a ação da Disney em alguns produtos, em especial a censura a comentários LGBTQIA+ em Homem-Formiga e a Vespa – Quantumania para sua exibição no mercado do Kuwait. De modo mais sutil, também insinuou que seu papel vocal como mulher lésbica e latina teve um papel em seu desligamento. Por outro lado, a imprensa vem afirmando que ela era a responsável pelo terrível clima em relação aos técnicos de efeitos visuais da Marvel-Disney, que vêm reclamando abertamente de jornadas de trabalho impossíveis, baixos salários e ambiente tóxico.

Essas queixas chegarem à imprensa semanas antes da demissão de Alonso não deve ser coincidência, contudo, independente de outras questões pendentes em ambos os lados.

Por fim, podemos perceber, como diz o The New York Times, que a Disney-Marvel está aproveitando a oportunidade da necessidade de cortes de custos para fazer um “limpa” na casa e reestruturar setores problemáticos, em especial no quesito humano. No entanto, os cortes devem ter implicações nos conteúdos, afinal, é preciso dinheiro para produzir. Com isso, não será surpresa se a Disney diminuir por ora o fluxo de produções para o cinema e TV, com implicações fortes nas franquias da Marvel e de Star Wars.

Nenhum cancelamento foi anunciado ainda (exceto à produções secundárias, como a segunda temporada de Willow ou uma prometida série sobre Indiana Jones), mas já correm há algum tempo notícias de freio nas produções de séries de TV para o Disney+, por exemplo, e produtos prometidos devem ao menos demorar mais a chegar.