Com o sucesso dos super-heróis nos cinemas, um capítulo obscuro das histórias em quadrinhos está vindo sempre à tona, e muitas vezes, de modo triste: a falta de direitos autorais dos criadores desses heróis contra uma megacorporação empresarial que quer a propriedade exclusiva de seus personagens. E um importante capítulo se encerrou hoje: segundo a Reuters, a Marvel Comics entrou em um acordo com um conjunto de criadores que processaram a empresa em busca dos direitos sobre os personagens que criaram.

Segundo divulgado em comunicados oficiais, a The Walt Disney Company (proprietária da Marvel Comics) e o advogado Marc Toberoff chegaram a um acordo amigável envolvendo a disputa com os criadores Larry Lieber, Don Heck, Gene Colan e Don Rico sobre a propriedade de um conjunto de personagens que criaram, como Homem de Ferro, Homem-Formiga, Capitão Marvel (e suas variantes), Thor, Viúva Negra, Gavião Arqueiro e Blade.
Esses artistas trabalharam na Marvel Comics, especialmente nos anos 1960 e 70 e criaram alguns dos personagens mais famosos da casa.

Larry Lieber era irmão de Stan Lee e atuava como roteirista e desenhista, tendo produzido histórias do Homem-Aranha e de Sgt. Fury and his Howling Commandos, mas é cocriador do Homem de Ferro (ao lado de Stan Lee, Jack Kirby e Don Heck) e do Homem-Formiga e da Vespa (ao lado de Stan Lee e Jack Kirby).

Além do Homem de Ferro, o desenhista Don Heck foi cocriador de um grande número de personagens, desde Viúva Negra e Gavião Arqueiro até vários dos vilões clássicos do vingador dourado e também de vários inimigos dos próprios Vingadores, como o Colecionador, Espadachim, Laser Vivo, Poderoso etc.
Don Rico foi um roteirista e desenhista que trabalhou algum tempo na Marvel e, além de escrever as histórias do Capitão América na década de 1950, foi o cocriador da Viúva Negra, ao lado de Stan Lee e Don Heck.

Gene Colan foi um dos principais desenhistas da Marvel nas décadas de 1960 e 70, trabalhando longamente em personagens como Demolidor e com passagens em Capitão América, Homem de Ferro e Namor. Ele é um dos criadores do Falcão (ao lado de Stan Lee) e do Capitão Marvel, ao lado de Stan Lee, Roy Thomas e John Romita, e da Carol Danvers, que muitos anos depois assumiria sua própria identidade heroica (Miss Marvel) e que hoje em dia usa o nome Capitã Marvel (que no inglês é “captain” do mesmo jeito, pois é uma palavra sem gênero definido). Colan também desenhou longamente a revista The Tomb of Dracula, parte da linha de terror da Marvel e que foi um grande sucesso na década de 1970, e na qual surgiu o herói Blade.
A criação nos quadrinhos é uma questão complicada, pois além de envolver muitas mãos, há o espinhoso aspecto corporativo. Tomemos o exemplo do Homem de Ferro: Stan Lee era o principal roteirista e editor-chefe da Marvel em 1963 e teve a ideia de criar uma história sobre um inventor milionário que usasse uma armadura de combate ao crime, e pediu a Jack Kirby para criar o visual da armadura, o que ele fez; então, a partir do visual Kirby e da premissa de Lee, Larry Lieber escreveu o roteiro da primeira aventura de Tony Stark, que foi desenhada por Don Heck, que foi quem elaborou o visual do empresário e de seu elenco coadjuvante – hoje personagens mundialmente famosos como Pepper Potts e Happy Hogan.
E como tudo é complexo, o visual de Kirby para a armadura era muito diferente do que estamos acostumados a ver, apresentando apenas alguns elementos visuais que persistiram ao longo dos anos (como o formato do capacete com seus olhos e boca retangulares e o disco peitoral) e algo mais próximo da armadura ao qual vinculamos o Homem de Ferro hoje em dia foi criado quase um ano depois por Steve Ditko, com aquele visual vermelho e amarelo que todos associamos ao vingador dourado.

Todavia, a lei dos Estados Unidos diz que trabalhos como o desses artistas se enquadram na categoria de “work for hire”, ou seja, trabalho de encomenda, já que eram criadores free lancers realizando uma atividade contratada para uma empresa, no caso, a Marvel. Nessa configuração, diz a lei, a propriedade da criação é da Marvel e não do artista, que não goza de nenhum direito sobre a propriedade do que foi produzido.
Porém, saindo da “letra fria da lei” fica uma questão moral: a Marvel ganhou e ganha rios de dinheiro com esses super-heróis criados por nomes como Lieber, Heck, Colan e Rico (além de outros, como Jack Kirby, Steve Ditko, John Romita, os irmãos John e Sal Buscema… uma infinidade de outros para citar apenas o período clássico, sem contar Stan Lee, o mais famoso deles). Então, seria ético que a Marvel recompensasse de algum modo esses criadores, seja com o pagamento de royalties ou outras modalidades.
Dessa forma, nos últimos anos, a Marvel (e sua dona, a Disney) vêm enfrentando uma série de processos judiciais desses criadores ou de suas famílias, quando eles já são falecidos, como é o caso de Colan ou Ditko.
O mesmo Marc Toberoff já defendeu a família de Jack Kirby em um processo similar e igual a este, gerenciou um acordo fora dos tribunais. De modo mais ruidoso, o advogado representou a família de Jerry Siegel pelos direitos do Superman contra a DC Comics e ganhou algumas batalhas importantes (neste caso, Toberoff provou que Siegel criou o Superman antes de trabalhar para a DC, o que descaracteriza o work for hire e um acordo foi feito, com a família sendo a proprietária de elementos da origem do personagem e recebendo vultosos pagamentos de royalties).
Os termos do acordo de Lieber, Heck, Colan e Rico (por meio de Toberoff) com a Marvel não foram revelados, e provavelmente, não serão, mas ainda que a Disney vencesse um ruidoso processo judicial na Suprema Corte (pois esse era o esperado), algum tipo de (boa) compensação deve ter sido arranjada aos pleiteantes.

Mas a Reuters chama à atenção que o também corrente processo da família de Steve Ditko contra a Marvel não faz parte do acordo. Ditko foi o cocriador e principal desenvolvedor do Homem-Aranha e do Doutor Estranho (ambos com Stan Lee), trabalhando com os personagens entre 1962 e 1966. Para Stephen Strange, Ditko criou sua origem e todo o seu universo básico; e para Peter Parker, não somente sua origem e elementos básicos, mas a maioria de seus vilões mais clássicos, como Duende Verde, Doutor Octopus, Electro, Mysterio, Homem-Areia, Abutre, Kraven, o caçador, e muito mais.
Ditko faleceu em 2018 e sua família iniciou o processo judicial em 2021.

