Num episódio triste dessa semana, o espólio dos dois ex-membros da banda The Jimi Hendrix Experience estão processando o espólio do lendário guitarrista por ausência de pagamento de royalties e direitos autorais. O caso aberto na Justiça britânica afirma que Noel Redding e Mitch Mitchell “morreram na pobreza”, enquanto a família Hendrix continua acumulando milhões em direitos autorais dos três álbuns lendários e icônicos que o grupo gravou nos anos 1960.

NOel Redding e Mitch MItchell em 1970.

Segundo o periódico britânico The Independent, os espólios de Redding e MItchell, representados pelo advogado Simon Malynicz, recorreram à Suprema Corte britânica num processo contra o braço inglês do conglomerado Sony Music Entertainment afirmando que, ainda em vida, os dois músicos já falecidos não receberam os direitos autorais dos álbuns Are You Experienced? (1967), Axis: Bold as Love (1967) e Electric Ladyland (1968), lançados pelo The Jimi Hendrix Experience, que além de Redding e MItchell no baixo e bateria, respectivamente, era liderado pelo guitarrista Jimi Hendrix. A primeira audiência do processo ocorreu na semana passada, no dia 09 de dezembro, quando foi destacado que o grupo foi um dos maiores sucessos musicais de seu tempo, em contradição com os não-ganhos dos dois músicos.

A defesa dos músicos apresentou o argumento que tanto Redding quanto MItchell foram destituídos de seus direitos muito cedo em suas vidas e morreram em relativa pobreza duas décadas atrás. Além disso, os discos de Hendrix continuaram entre os maiores sucessos do rock clássico e permanecem rendendo altos dividendos na era digital por meio dos streamings. E uma vez que os músicos ficaram excluídos dos ganhos, assim permanecem seus herdeiros.

O argumento do caso, diz o The Independent, defende que a exclusão não partiu de Jimi Hendrix, que morreu em 1970 pouco mais de um ano após o fim do Experience, mas por parte dos herdeiros legais do guitarrista, que manipularam Redding e MItchell para abrirem mão de seus direitos ainda no início dos anos 1970. Também esclarece que o processo não questiona a autoria das canções gravadas pelo Experience, pois Hendrix era o compositor da banda, porém, que como músicos que eram 1) parte da banda, e 2) tocaram nas gravações, a eles cabem os percentuais específicos direitos de performance na gravação e por criação de arranjos, que não vem sendo pagos.

A resposta por escrito lida na Corte na audiência do dia 09 dada pelo advogado Robert Howe, representando o grupo Sony Music, diz que o copyright de gravação pertence não aos músicos que tocaram no disco, mas aos produtores musicais, que nos discos originais são creditados como o próprio Jimi Hendrix e o produtor Chad Chandler. O advogado também diz que essa questão já foi discutida numa corte de Nova York, nos Estados Unidos, nos anos 1970, e que na ocasião, Redding e Mitchell abriram mão de seus direitos em troca de pagamentos de US$ 100 mil e 247,5 mil, respectivamente. O representante da gravadora também afirma que, no tempo de vida dos músicos, eles não processaram o espólio de Hendrix pela questão, o que, para eles, deslegitima o pleito de seus familiares.

É uma questão delicada e, sem dúvidas, um labirinto legal difícil de percorrer a quem é leigo em direito musical ou copyright. Hendrix teve uma carreira curta e errante, marcada por péssimos contratos comerciais, fruto da ação gananciosa de empresários oportunistas aliados de um contexto no qual o showbizz como o conhecemos ainda estava se estruturando e havia poucas ferramentas de proteção aos artistas. Esse ecossistema permitiu que, após a morte precoce do guitarrista, o espólio dele tenha sido palco de uma das histórias mais confusas, bizarras e conflitivas sobre a exploração do legado do artista.

Por isso, ao contrário de outros artistas que morreram na mesma época, como a cantora Janis Joplin ou o cantor Jim Morrison (do The Doors), que tiveram uma exploração mais “enxuta”, organizada e respeitosa do seu legado e de eventuais gravações inéditas remanescentes, Hendrix foi alvo de uma campanha inacreditável de exploração caça-níqueis, com nada menos do que dezenas de álbuns “inéditos” lançados ao longo dos anos 1970, quase sempre, de modo desrespeitoso ao artista.

Capa de Both Sides of the Sky, álbum novo de 2018.

A querela permaneceu até meados dos anos 1990, quando finalmente a família do guitarrista conseguiu o controle do espólio e a empresa Experience Hendrix passou a reorganizar a discografia oficial do músico e relançar material inédito com mais qualidade.

No meio dessa jornada, Noel Redding e MItch MItchell, os músicos que mais tempo acompanharam Hendrix e com quem ele gravou a parte mais importante e significativa de sua discografia, terminaram deixados “de lado”, também enganados na teia dos contratos que os excluíram dos royalties. É claro, Hendrix era a estrela, o cantor, guitarrista e compositor, mas Redding e Mitchell estavam lá não apenas como músicos, mas como parte da banda, um trio. É justo que parte dos direitos autorais – seja de arranjo, execução, gravação ou outra coisa – ficassem com eles.

Sem dúvidas, dentro do panorama moderno capitalista, não é justo que suas famílias, como herdeiros, não recebam nada pelas gravações. Mesmo que é quase inaceitável que os músicos tenham morrido sem receber esse tipo de pagamento.

Hendrix (esq.) como parte da banda Curtis Knight & The Squires: músico de apoio.

James Marshall Hendrix nasceu na cidade de Seattle, no estado de Washington, nos Estados Unidos, em 27 de novembro de 1942, fruto de uma família multiétnica, com herança africana e indígena. Crescendo na pobreza e órfão de mãe, o pequeno James encontrou refúgio na música e aprendeu a tocar guitarra sozinho. Ele desenvolveu suas habilidades quando foi convocado pelo Exército, onde serviu como paraquedista durante um par de anos, também tocando em bandas militares.

Ao dar baixa no início dos anos 1960, Hendrix se tornou um músico itinerante, rodando os Estados Unidos acompanhando todo o tipo de artista, inclusive, alguns nomes de renome, como o pianista LIttle Richard, mas sempre ficando frustrado por não encontrar o espaço que julgava necessário para exibir suas habilidades. Por fim, em 1964, o guitarrista se fixou na cidade de Nova York, onde passou a tocar de maneira fixa em alguns clubes, como o Café Wah?, no Greenwish Village, onde sua mistura de rock e blues com toques psicodélicos e malabarismos físicos e sonoros com a guitarra começaram a chamar a atenção dos músicos britânicos que visitavam a cidade, como Beatles e Rolling Stones.

The Jimi Hendrix Experience: uma das maiores bandas da história do rock em apenas três discos.

No verão de 1966, o baixista do recém-extinto The Animals, Chad Chandler, conseguiu convencer Hendrix a emigrar para Londres, na Inglaterra, onde existia um cenário musical mais fértil e receptível para a música que ele estava criando. Chegando lá, Hendrix se uniu a Noel Redding (baixo) e MItch MItchell (bateria), formaram o The JImi Hendrix Experience, fizeram shows explosivos nos clubes da cidade e engataram imediatamente a gravação de um álbum, antecipado pelos singles com Hey Joe e Purple Haze, que causaram comoção no meio musical, e o álbum Are You Experienced? (1967) não apenas fez sucesso, mas revolucionou o rock com sua pegada pesada e psicodélica em pleno Verão do Amor.

Após fazer sucesso no Reino Unido e Europa, o Experience finalmente conseguiu sucesso nos EUA após ser a atração principal no Monterrey Festival, na Califórnia, e daí em diante, o grupo passou a fazer concertos incessantes no país, e lançaram mais dois álbuns, até decidirem encerrar as atividades no início do ano de 1969, quando Redding deixou o grupo. Hendrix passou a usar apenas seu nome tocando com outros músicos, com MItchell permanecendo com ele em shows por um tempo.

Hendrix ao vivo em Woodstock: álbuns “novos”.

Após tocar no Woodstock Festival com uma banda provisória, Hendrix tentou formar uma nova banda chamada Band of Gypsies, que lançou um álbum ao vivo de faixas inéditas em 1970, do qual ele não gostou do resultado e começou a organizar uma nova banda, trazendo Mitchell de volta. Ele também se voltou à gravação de estúdio tentando fazer um álbum que fizesse jus à sua visão, mas não teve tempo: enquanto fazia shows na Europa, Hendrix morreu vítima de uma overdose pela combinação de álcool e medicamentos, em 18 de setembro de 1970, aos 27 anos de idade.

Sem o músico, uma guerra de empresários e contratos duvidosos varreu a indústria musical, abrindo possibilidade de dúzia lançamentos póstumos sobre o músico.

Redding morreu aos 57 anos em 2003 e MItchell morreu em 2008 aos 63 anos.

O processo do espólio de Redding e MItchell contra a Sony Pictures deve ser concluído daqui há alguns dias, em 18 de dezembro, com o veredito da Suprema Corte, representada pelo juiz Edwin Johnson.