Foi noticiado pelo ComicBook na sexta-feira, dia 08, o fim da batalha legal entre a editora Marvel Comics e os herdeiros do desenhista-roteirista Steve Ditko, cocriador do Homem-Aranha e Doutor Estranho. O processo judicial era parte de um bloco maior de ações lideradas pelas famílias de outros criadores clássicos da editora, como Gene Colan, Don Heck e Don Rico, que se iniciou em 2021; mas enquanto as outras partes entraram em acordo no mês de junho passado, os herdeiros de Ditko prosseguiram em negociações que só se encerraram agora.
O HQRock escreveu detalhadamente sobre o processo neste post (clique aqui).

Esses quatro artistas tiveram participação decisiva na criação do Universo Marvel, mas ao passo que sempre foram creditados por isso, nunca receberam direitos autorais significativos por suas invenções, já que os personagens clássicos – e mundialmente famosos – que criaram pertencem única e exclusivamente à Marvel Comics, agora, sob o controle da Disney.

Gene Colan trabalhou na Marvel desde a década de 1940, ilustrando e escrevendo histórias do Capitão América, antes de regressar de modo decisivo nos anos 1960, desenhando histórias do personagem, de novo, e de Demolidor, Capitão Marvel, Namor e muitos outros. Ele é cocriador de personagens como Falcão, Capitão Marvel, Carol Danvers (que virou a Capitã Marvel) e muitos coadjuvantes do universo do Demolidor, onde fez uma obra longeva. Também é o cocriador de Blade, o caçador de vampiros, que surgiu nas aventuras da revista The Thumb of Dracula.
Don Heck era um desenhista que foi o cocriador de personagens como Homem de Ferro, Viúva Negra, Gavião Arqueiro, e muitos coadjuvantes e vilões dos Vingadores, time que ilustrou em uma temporada clássica. Don Rico é um artista da velha guarda, que escreveu e desenhou histórias do Capitão América e é cocriador da Viúva Negra.

Mas o processo de Steve Ditko era diferenciado, pois a ele cabem duas “cabeças de franquias” importantes: começando a carreira na Marvel como assistente de Jack Kirby, Ditko se tornou o principal colaborador das revistas Amazing Fantasy e Strange Tales para as quais cocriou, ao lado de Stan Lee, o Homem-Aranha e o Doutor Estranho, respectivamente. Peter Parker ainda é o personagem mais popular da Marvel e isso dá poder de fogo à reclamação da família do artista.
Os artistas eram representados por Marc Toberoff, advogado que se especializou em casos de direitos autorais de personagens antigos de quadrinho, e que garantiu vitórias importantes de artistas como Jack Kirby (com a Marvel) e Jerry Siegel (cocriador do Superman) para a DC Comics. A Marvel era defendida por Dan Petrocelli e Molly Lens of O’Melveny, e enquanto um acordo foi conseguido para Heck, Rico e Colan, a família de Ditko, liderada por seu irmão, Patrick Ditko, insistiu em alguns pontos.
O acordo foi fechado e o processo judicial encerrado, mas os detalhes do caso não se tornaram (e nem se tornarão) públicos. A Marvel prometeu um comunicado oficial para as próximas semanas. A nota oficial diz que as partes chegaram a um acordo “amigável”.

Steve Ditko nasceu em 02 de novembro de 1927, na Pennsylvania, e depois migrou para Nova York, onde viveu até o fim de seus dias. Autodidata, começou a escrever e desenhar HQs no pós-guerra e a partir de 1952 ingressou no estúdio da dupla Jack Kirby e Joe Simon (os criadores do Capitão América), e seguiu trabalhando com Kirby quando ele voltou à Marvel Comics no fim da década de 1950. Lá, Ditko começou a trabalhar por conta própria, fazendo revistas de fantasia até cocriar o Homem-Aranha com Stan Lee, que estreou em Amazing Fantasy 15, de 1962. Pouco depois, ele também cocriou com Lee o Doutor Estranho, que saiu na revista Strange Tales.

Ditko se tornou o principal criador de ambos os personagens, escrevendo o plot e fazendo os desenhos, durante os anos iniciais deles, entre 1962 e 1966, ao passo que Lee contribuía principalmente na escrita dos diálogos, e era o editor-chefe da editora. Assim, Ditko foi a principal força motriz desses dois heróis, de seus coadjuvantes e de seus vilões, personagens que são famosos no mundo inteiro hoje em dia, como Duende Verde, Doutor Octopus, Abutre, Homem-Areia ou Gwen Stacy e Harry Osborn (no Homem-Aranha) e Wong, Ancião, Barão Mordo, Dormammu (no Doutor Estranho).

Ditko também desenhou e escreveu histórias do Hulk e do Homem de Ferro antes de sair da Marvel e continuar produzindo quadrinhos de modo mais outsider até morrer. Ele era um homem muito recluso, não afeito aos holofotes e se manteve afastado das manchetes. Não casou e não deixou filhos, morrendo em 29 de junho de 2018, de modo que o representante de seu espólio é seu irmão, Patrick. Saiba mais sobre sua vida e obra no post do HQRock sobre sua morte.
A questão dos direitos autorais vem sendo bastante debatida na indústria das HQs, pois a estrutura jurídica dos EUA coloca as criações dessa mídia sob o teto do “trabalho de encomenda” (work for hire), o que quer dizer que o empregador (a editora) é a/o dona/o exclusiva do material, ao passo que os criadores (os artistas) quase sempre eram pagos por número de páginas produzidas, sem direito a royalties. No entanto, na medida em que esses personagens criados por esses artistas se transformam em franquias multimilionárias e se tornam a maior fonte do entretenimento mundial (via principalmente, mas não exclusivamente, cinema), abre-se a questão ética de que tais artistas precisavam ser recompensados por isso.
Enquanto a DC Comics se notabilizou por ser mais generosa e pagar boas quantias de dinheiro em royalties pelo uso de personagens aos seus criadores, a Marvel assumiu um tom mais conservador e mesquinho, pagando apenas um punhado de milhares de dólares (US$ 5 mil para ser mais exato) pelo uso das criações de nomes como Ditko, Colan, Heck ou Rico. Isso gerou insatisfações e processos.
Daí vem a famosa frase de Jim Starlin, roteirista e desenhista que atuou principalmente entre os anos 1970 e 90, de que ganhou mais dinheiro com a pequena participação do KGBesta (um vilão do Batman que tem um papel secundário em Batman vs Superman – A Origem da Justiça, de 2016) do que pelo protagonismo de Thanos no MCU, ambos vilões que criou.
A este ponto, todos os grandes criadores da Marvel Comics da era clássica já fecharam acordos de royalties via processos judiciais, incluindo os citados e Jack Kirby, que foi o grande parceiro de Stan Lee na criação da maioria dos personagens principais do Universo Marvel. Há notícias de que outros artistas mais jovens, que atuaram nos anos 1970, por exemplo, que renderam também muitos dos personagens que vemos nos cinemas, também já foram convidados a assinarem novos contratos retroativos para evitar processos futuros.

