A polarização política que atinge o mundo não é fruto só de campanhas eleitorais ou discursos de ódio nas redes sociais, mas está também intrínseca às disputas envolvendo os grandes capitais e o mundo do entretenimento. Numa entrevista impressionante ao The Financial Times, o bilionário Nelson Peltz, um dos grandes investidores da Disney, reclamou do estúdio produzir filmes estrelados por negros e mulheres e criticou diretamente a gestão de Kevin Feige no comando do Marvel Studios.

Antes, um contexto necessário… Como o HQRock já divulgou em outra oportunidade, Nelson Peltz é o dono de uma empresa de financiamentos chamada Trian Partners e é um dos grandes investidores da Disney, dono de 3,5 bilhões em cotas da gigante do entretenimento. Mas não é só isso: Peltz é o principal articulador de uma campanha para colocar “vozes conservadoras” na mesa diretora da Casa do Rato, sendo o principal deles, o também investidor Isaac “Ike” Perlmutter, ex-proprietário da Marvel Entertainment e também seu ex-CEO até há pouco tempo atrás.

Ike Perlmutter, ex-CEO da Marvel.

Ferrenho apoiador de Donald Trump, o israelense Perlmutter se tornou sócio da Marvel no anos 1980 e terminou por virar sócio majoritário e proprietário da empresa nos anos 1990, sendo um dos articuladores do processo de recuperação judicial da Marvel, depois da editora quase ir à falência em 1996. Ele foi o principal “dono” da Marvel até 2009, quando vendeu a companhia para a Disney, mas permaneceu no cargo de CEO da Marvel Entertainment até março do ano passado.

Insatisfeito com a situação, Perlmutter se aliou a Peltz para ganhar um assento na mesa diretora da Disney num plano que é visto como uma “vingança pessoal”.

Bob Iger, CEO da Disney.

Perlmutter nunca deu um entrevista na vida, é um sujeito muito recluso. Mas Peltz falou ao Financial Times. Questionado sobre os rumores de que queria derrubar o CEO da Disney, Bob Iger, Peltz disse:

A Disney é estúpida, porque eu não estou tentado demitir Bob Iger, eu quero ajudá-lo. Nós não demitimos CEOs.

A ação do ano passado foi repelida pela empresa, que justificou que Peltz e seus camaradas não têm um plano claro do que fazer sobre o momento de crise pelo qual passa a indústria cinematográfica, no que o bilionário afirmou:

Eles dizem que eu não sei de nada sobre o mercado de filmes, e nós não estamos dizendo que sabemos, mas eu acho que eles [Disney] não sabem, com cinco grandes perdas [de bilheteria] em sequência. Eles perderam o primeiro lugar na animação, perderam o primeiro lugar em lançamentos. Talvez seja a hora de mudar o gerenciamento dessas divisões.

Kevin Feige, presidente do Marvel Studios.

Um de seus alvos claros é Kevin Feige, o presidente do Marvel Studios e criou a mais poderosa franquia da história do cinema, com arrecadação de US$ 30 bilhões em 33 filmes em 15 anos. Perguntado pelo jornal se ele propõe a demissão de Feige, Peltz ficou na defensiva:

Eu não estou pronto para dizer isso [que quero demiti-lo], mas eu questiono os seus feitos.

FILE PHOTO: Nelson Peltz founding partner of Trian Fund Management LP. speak at the WSJD Live conference in Laguna Beach, California October 25, 2016. REUTERS/Mike Blake/File Photo

Então, Peltz coloca sua opinião sobre o cenário:

As pessoas vão assistir um filme ou um programa [de TV] para serem entretidas. Elas não vão por uma mensagem. Por que eu tenho que ter uma [propriedade] Marvel que é toda de mulheres? Não tenho nada contra as mulheres, mas por que eu tenho que ter aquilo? Por que eu não posso ter uma Marvel que sejam com ambos [os sexos]? Porque eu preciso de um elenco todo negro?

Caramba… qual é o problema dessas pessoas? Por que elas ficam tão ofendidas ou incomodadas com a participação – mesmo que majoritária – de mulheres e negros? Por que isso incomoda? Eles nunca reclamam se o filme tiver apenas homens brancos.

A diversidade sexual e racial foi o que transformou produtos como Pantera Negra e Capitã Marvel em mais do que filmes de entretenimentos, mas fenômenos culturais e sociais que renderam debates, reconhecimentos, elogios e sucesso… financeiro e artístico, com ambos os longas ultrapassando o 1 bilhão de dólares nas bilheterias.

E é curioso como o típico argumento “eu não tenho nada contra as mulheres”, é sempre usado justamente por aqueles que têm sim algo contra elas.

A crise do cinema atual não tem a ver com representatividade, mas sim, com a mudança social do mundo, que está cada vez conectado e gerando pessoas que estão cada vez menos dispostas a sair de casa para terem entretenimentos como o cinema, quando podem ter um simulacro disso na própria casa, com telas de alta resolução, aparelhos de som de boa qualidade a preços módicos e telas cada vez maiores. E parte do público sequer é tão exigente, e se contenta até em assistir apenas pela diminuta tela do celular!

O cinema Hollywoodiano criou a ilusão de que estava à salvo na década dourada da Marvel porque esses filmes ultrapassavam com facilidade a barreira mágica do 1 bilhão, mas não era o caso, era mais uma miopia. O pública ia assistir esses filmes no cinema 1) pela comoção social e 2) porque a tela do cinema beneficiava a experiência com tamanho, resolução, som e efeitos 3D. Mas como já dissemos, a maior parte do público já pode hoje, com o avanço da tecnologia, desfrutar de boa parte disso em casa.

E a mesma Hollywood não deu atenção ao fato de que os filmes que não eram blockbusters não faziam mais bilheteria expressiva, e que grande nomes do cinema mundial, como Martin Scorcese, mal pagavam os próprios filmes com a arrecadação. Mas os super-heróis seguraram a bola. Agora que dá para curti-los sem ir ao cinema, o público continua indo cada vez menos ir ver Scorcese e congêneres e o resultado está aí: na maior crise que o cinema já viu, com certeza, acelerada pela pandemia.

E talvez aja mesmo um pouco de cansaço pelos super-heróis: são muitos lançamentos em pouco tempo e isso satura qualquer mercado. Como a economia já mostrou muito bem, o que dá valor a uma mercadoria é sua raridade. Com uma dúzia de filmes de super-heróis ao ano, mais outra dúzia de séries, sim, o mercado começa a cansar e diluir, como um sapato que baixa o preço porque tem um estoque alto demais nas prateleiras.

Mas o bom é ver um bilionário que diz que não entende nada de mercado de filmes querer controlar o mercado de filmes. Hollywood é mesmo a cara do capitalismo.

O melhor de tudo foi a resposta da Disney: questionada sobre as declarações contra mulheres e negros, um porta-voz da Casa do Rato resumiu bem a questão em uma frase curta…

É exatamente por isso que Nelson Peltz não deveria estar nada próximo do aspecto criativo da companhia.