Vivemos em tempos de reconfiguração de determinadas representações sociais, o que inclui uma grande atenção aos direitos de minorias, reforços identitários e a punição de comportamentos não mais tolerados. Piadas machistas, comentários agressivos a gênero ou raça, preconceito… isso muito mais passa a ser mais vigiado e se buscam alternativas para evitá-las e mudar posturas e linguajar. Tal postura e pensamento se expressam em todas as categorias da vida, inclusive, nas artes. Nos últimos dias, uma grande discussão tomou a imprensa com a revisão das obras do escritor infantil Roald Dahl, e no Brasil, já vivenciamos isso há pouco tempo com a obra de Monteiro Lobato. Agora, é a vez de Ian Fleming e os livros de James Bond, o agente secreto 007.

Roald Dahl é o autor de obras famosas como A Fantástica Fábrica de Chocolates (1964), O Bom Gigante Amigo (1982) e Mathilda (1988) e seus herdeiros entraram em acordo com sua editora para reescrever alguns trechos dos livros para eliminar expressões preconceituosas. Sendo um dos mais lidos e conceituados escritores britânicos, a medida causou bastante polêmica. Alguns críticos são favoráveis às mudanças, outros acusam a ação de censura. No Brasil, algo muito parecido ocorreu com o também escritor infantil Monteiro Lobato, famoso por obras como Sítio do Pica-Pau Amarelo, homem controverso cuja escrita também é marcada de expressões preconceituosas muito fortes. Sua família patrocinou uma revisão da obra, com trechos reescritos para atenuar os problemas. Também gerou debate.

Ian Fleming e James Bond irão passar pelo mesmo processo.

O primeiro livro de Fleming, Casino Royale, completa 70 anos de publicação em 2023. Grande sucesso na época de lançamento, deu origem à série literária de 007 e inspirou a série de filmes que começou em 1962 e prossegue hoje como uma das franquias mais valiosas do cinema mundial. Jornalista de profissão e um ex-agente secreto de verdade, Fleming morreu em 1964, aos 56 anos de idade, tendo publicado 12 livros de seu personagem favorito (e mais dois póstumos em seguida).

Como parte das celebrações, a obra do autor ganhará novas edições pela Ian Flaming Publications, editora pertencente aos herdeiros do escritor. É a primeira vez que isso acontece, pois anteriormente sua obra estava nas mãos de outras editoras britânicas e controlada pela EON Production, que é dona dos direitos do personagem para o cinema.

As novas edições terão trechos reescritos, especialmente quanto a passagens preconceituosas a negros e latinos, que hoje, segundo o anúncio oficial, “seriam consideradas profundamente ofensivas”. Ao mesmo tempo, a família garante que as modificações são mínimas no conjunto da obra e que se privilegiou manter o estilo de escrita e o seu tempo.

Aparentemente, a obra mais afetada é Viva e Deixe Morrer, o segundo livro de 007, publicado em 1954, que traz comentários preconceituosos aos negros dos Estados Unidos. Por outro lado, o anúncio oficial informa que algumas obras, inclusive, Cassino Royale, não precisaram de nenhuma alteração.

Ian Fleming reading a copy of Casino Royale

Inspirada pelo caso de Dahl, a família baseou sua ação no precedente do próprio Viva e Deixe Morrer. Quando o livro foi licenciado para publicação nos EUA, em 1955, o editor americano realizou uma série de modificações no texto para atenuar expressões e comentários que, à época, ele já julgava racialmente ofensivos e que poderiam gerar problemas. Fleming acatou as mudanças e, mais tarde, teria dito que preferia a versão americana do que a original. Com isso, os herdeiros acharam por bem repetir o processo em outros livros, considerando que têm o aval de seu criador.

A controvérsia das modificações também já ronda a imprensa, com críticos e escritores se manifestando a favor ou contra a medida.

No caso de Dahl, por exemplo, o escritor ganhador do Prêmio Booker, Salman Rushdie (famoso pelo livro Os Versos Santânicos), se manifestou contrário às alterações, acusando-as de “censuras absurdas”. Rushdie foi perseguido por movimentos conservadores islâmicos por pretensas afirmações preconceituosas em seu livro e foi oficialmente jurado de morte pelo governo do Irã a partir dos anos 1980. Alguns anos atrás, ele sofreu um atentado a faca em um evento literário nos EUA, o que resultou em ferimentos graves e na perda de visão de um dos olhos.

Não há um prazo para o lançamento dos novos livros nem um cronograma detalhado, mas pelo menos Cassino Royale sairá ainda este ano.

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